16 de Março de 2004
1. Este ano, na ocorrência do X aniversário da sua instituição, a Pontifícia Academia para a Vida (PAV) dedicou os trabalhos da sua Assembleia Geral a um tema de grandíssima actualidade e de grande impacto social, que o título do Congresso exprime muito bem: “A dignidade da procriação humana e as tecnologias reprodutivas. Aspectos antropológicos e éticos”.
2. Já transcorreram mais de vinte e cinco anos depois do nascimento da primeira criança, originada por um procedimento de fecundação in vitro. Calcula-se que depois dela, até aos nossos dias, em todo o mundo foram obtidos mais de um milhão com os mesmos procedimentos. De facto, durante estes anos, o recurso às técnicas de reprodução assistida conheceu uma progressiva difusão em diversos Países do mundo, obrigando em muitos casos os governos nacionais a eleborar normas legislativas específicas, para regular os procedimentos complexos relacionados com o uso destas metodologias.
Também a pesquisa científica neste sector investiu recursos crescentes, humanos e económicos, para procurar tornar mais “eficazes” as ART (Artificial Reproductive Technologies), sem conseguir, contudo, obter um substancial incremento da taxa global de nascimentos em cada ciclo de tratamento. Essa taxa manteve-se tão baixa que, se fosse confrontada com outros tratamentos médicos, seria sem dúvida interpretado como um sinal evidente de uma substancial falência técnica. Além disso, no caso da reprodução artificial, uma taxa tão baixa de êxito, além de representar um dado estatístico de falência técnica, tem com frequência como triste consequência tanto sofrimento e desilusão por parte dos casais que, desta forma, vêem, com estes meios, frustradas as suas esperanças de genitorialidade.
Infelizmente, este dado estatístico negativo tem uma trágica correspondência factual na grande perda de embriões humanos, a partir do momento que as maiores dificuldades operativas ainda presentes nas ART dizem respeito precisamente ao momento da implantação e do desenvolvimento sucessivo do embrião.
3. Deve-se obervar também como a intervenção da medicina no âmbito da procriação tenha iniciado sob a égide de uma benéfica “cura da esterilidade”, em muitos casais afligidos por esta condição, perante um desejo sincero de genitorialidade. Os dados actualmente disponíveis, entre outras coisas, demonstram como a percentagem de esterilidade de casal está a aumentar, sobretudo nas sociedades ocidentais, solicitando a ciência à empenhativa tarefa de se comprometer na descoberta das causas reais e encontrar os remédios. Contudo, esta finalidade originária maturou em parte com o tempo. Por um lado, ela manifesta-se por vezes numa atitude por assim dizer autocondescendente que, face a um grande número de casos de esterilidade por causas indeterminadas, sem se preocupar com desempenhar ulteriores averiguações diagnósticas e clínicas, vê no rápido recurso às ART a única forma de tratamento útil; por um lado, entrevê-se no horizonte um fenómeno ainda mais preocupante: referimo-nos ao surgimento de uma mentalidade nova, segundo a qual o recurso às técnicas de reprodução artificial poderia representar até uma forma preferencial, em relação à “natural”, para gerar um filho, porque através destas técnicas é possível exercer um “controle” mais eficaz sobre a qualidade do concebido, em relação aos desejos de quem o requer. Tudo isto contribui para considerar o filho obtido mediante as ART como um “produto”, cujo valor, na realidade, depende em grande medida da sua “boa qualidade”, submetida a controles severos e cuidadosamente seleccionados. A dramática consequência é a eliminação sistemática daqueles embriões humanos que resultam privados da qualidade considerada suficiente, muito mais segundo parámetros e critérios inevitavelmente inopináveis.
Infelizmente, não faltam iniciativas científicas e legislativas com o objectivo da produção, mediante as ART, de embriões humanos a serem “usados” exclusivamente para fins de pesquisa e que coincide com a sua destruição transformando-os assim em objectos de laboratório, vítimas sacrificais predestinadas a serem imoladas no altar de um progresso científico que deve ser perseguido “custe o que custar”.
4. À luz de tudo isto, a PAV, em coerência com as suas finalidades institutivas, sente o desejo e ao mesmo tempo a responsabilidade de oferecer à comunidade eclesial e à sociedade civil o seu contributo de reflexão, a fim de repropor à atenção de cada pessoa de boa vontade a altíssima dignidade da procriação humana e dos seus significados intrínsecos.
5. O nascimento de um novo ser humano, considerado em si mesmo, é sempre um dom e uma bênção: “Olhai: os filhos são uma bênção do Senhor; o fruto das entranhas, uma verdadeira dádiva” (Sl 126, 3).
Com efeito, cada homem, desde o primeiro momento da sua vida, é o sinal evidente do amor fiel de Deus pela humanidade, é o ícone vivo do “sim” do Criador à história dos homens, uma história de salvação que se realizará em comunhão plena com Ele, na alegria da vida eterna. De facto, cada ser humano, desde a sua concepção, é uma unidade de corpo e alma, possui em si mesmo o princípio vital que o levará a desenvolver todas as suas potencialidades, não só biológicas, mas também antropológicas.
Por isso, a dignidade de pessoa humana de um filho, de cada filho, independentemente das circunstâncias concretas em que tem início a sua vida, permanece um bem intangível da sociedade no seu conjunto.
Entre todos os direitos fundamentais que cada ser humano possui desde o momento da sua concepção, o direito à vida representa sem dúvida o primário, porque constitui a condição de possibilidade para a subsistência de todos os outros direitos. Com base nele, cada ser humano, sobretudo se é fraco ou não é auto-suficiente, deve receber uma adequada tutela social de qualquer forma de ofensa ou violação substancial da sua integridade físico-psíquica.
6. Precisamente esta inalienável dignidade de pessoa, que pertence a cada ser humano desde o primeiro momento da sua existência, exige que a sua origem seja a consequência directa de um adequado gesto humano pessoal: só o recíproco dom de amor esponsal de um homem e de uma mulher, expresso e realizado no acto conjugal, no respeito da unidade inseparável dos seus significados unitivo e procriativo, representa o contexto digno para o surgimento de uma nova vida humana. Esta verdade, ensinada desde sempre pela Igreja, tem a sua correspondência plena no coração de cada homem, como realçam as recentes palavras de João Paulo II: “Emerge cada vez mais o vínculo imprescindível da procriação de uma nova criatura com a união esponsal, mediante a qual o esposo se torna pai através da união conjugal com a esposa e a esposa se torna mãe através da união conjugal com o esposo. Este desígnio do Criador está inscrito na própria natureza física e espiritual do homem e da mulher e, como tal, tem um valor universal” (João Paulo II, Discurso aos participantes na X Assembleia Geral da PAV, 21/2/2004, n. 2).
7. Por conseguinte, recordando a firme convicção de que as técnicas de reprodução artificial, longe de serem uma real terapia para a esterilidade do casal, representam uma modalidade indigna do surgimento de uma nova vida humana, cujo início, dependeria desta forma, em grande parte, da acção técnica de pessoas externas ao casal e realizar-se-ia num contexto totalmente isolado do amor conjugal. Com efeito, no recurso às ART, os casais não participam de forma alguma na concepção do filho com a doação recíproca, ao mesmo tempo corpórea e espiritual, das suas pessoas, através do acto conjugal. Também o Papa quis evocar esta verdade, com as seguintes palavras: “O acto com o qual o esposo e a esposa se tornam pai e mãe através da doação recíproca e total faz com que eles sejam cooperadores do Criador na concepção de um novo ser humano, chamado à vida para a eternidade. Um gesto tão rico, que transcende a própria vida dos pais, não pode ser substituído por uma mera intervenção tecnológica, empobrecida de valor humano e submetido às determinações da actividade técnica e instrumental” (Ibidem).
8. Além destas razões de princípio, existem depois algumas circunstâncias concretas na aplicação das ART, à luz das actuais possibilidades técnicas, que agravam o juízo ético negativo sobre elas. Entre elas, desejamos recordar sobretudo o grande número de embriões humanos perdidos ou destruídos depois deste procedimento, um verdadeiro “massacre dos inocentes” dos nossos dias: nenhuma guerra nem catástrofe jamais causou tantas vítimas. Paralelamente, existem também os embriões que, por várias razões, acabam por ser crioconservados; eles, se forem recusados pelos comitentes, “são expostos a um destino absurdo, sem possibilidade de lhes oferecer meios certos de sobrevivência licitamente perseguíveis” (CDF, Donum Vitae, II, 5). Qualquer ulterior reflexão sobre este ponto, e em particular sobre a questão da possibilidade (teórica e real) de uma eventual adopção pré-natal destes embriões “supranumerários”, exigiria entre outras coisas, a análise aprofundada de dados científicos e estatísticos pertinentes, realmente ainda não disponíveis na literatura. Por conseguinte, a PAV considerou ser prematuro, durante esta Assembleia, enfrentar directamente a questão.
Deve ser também realçado o facto de que a actuação e o aperfeiçoamento das técnicas de reprodução artificial, cuja taxa de eficiência é objectivamente muito baixa, exigem o investimento de notáveis recursos médicos e económicos, que desta forma são subtraídos à necessidade de curas de outras patologias muito mais graves e difundidas, das quais com frequência depende a própria sobrevivência de inteiros grupos humanos.
Depois, no caso da modalidade “eteróloga” das ART (ou seja, no caso de recurso à doação de gametas por parte de um sujeito externo ao casal), estamos na presença de mais um elemento que agrava o juízo ético já negativo. A unidade conjugal do casal é, com efeito, ofendida e violada pela presença de uma terceira pessoa (e por vezes até de uma quarta), que depois será um dos verdadeiros pais biológicos do filho pedido. E também é violado substancialmente o direito do neoconcebido a ter como pais um homem e uma mulher, dos quais tenha origem a sua estrutura biológica e que se ocupem estavelmente do seu crescimento e da sua educação.
Ao contráro, consideramos moralmente lícita a realização, no caso em que haja a sua efectiva necessidade, de eventuais intervenções técnicas que, sem pretender substituí-lo, sejam destinadas a facilitar o acto conjugal naturalmente realizado ou a ajudá-lo a alcançar os seus objectivos naturais (cf. CDF; Donum Vitae II, 6).
9. A eventual esterilidade, para um casal que deseja encontrar “no filho uma confirmação e um complemento da sua doação recíproca” (Donum Vitae, II, 2) pode sem dúvida constituir um motivo real de grande sofrimento e ser fonte para ele de ulteriores problemas. Não há dúvida de que um desejo como este seja, em si mesmo, mais do que legítimo e um sinal positivo do amor conjugal que quer crescer e realizar-se em todas as suas expressões. Contudo, é necessário recordar que um “desejo do filho”, que é muito compreensível e lícito, nunca se pode transformar num pretendido “direito ao filho” e, pior ainda, “custe o que custar”. Nenhum homem pode vangloriar-se do direito à existência de outro homem, porque, neste caso, ele seria colocado a um nível de inferioridade de valor em relação àquele que se vangloria desse direito. Na realidade, um filho nunca pode ser entendido como “um objecto do desejo” que se deve possuir custe o que custar, mas sim como um preciosíssimo dom que se deve aceitar com amor, se for concedido. Os casais são chamados a criar todas as condições necessárias, através da sua doação recíproca de amor conjugal, para que possa ter início uma nova vida, mas não podem licitamente determinar o seu surgimento, a ponto deencomendar a sua “produção” no laboratório, por obra de técnicos que nada têm a ver com o próprio casal.
Pelo contrário, perece-nos que devem ser acolhidos com grande favor e encorajados todos os esforços que a medicina moderna pode produzir na tentativa de curar formas de esterilidade conjugal, como o próprio Pontífice recordou: “desejo encorajar as pesquisas científicas destinadas à superação natural da esterilidade nos casais, assim como desejo exortar os peritos a aperfeiçoar aquelas intervenções que podem resultar úteis para esta finalidade. Faço votos por que pelo caminho de uma verdadeira prevenção e da autêntica terapia, a comunidade científica o apelo é feito sobretudo aos cientistas crentes possa obter progressos confortadores” (João Paulo II, Discurso aos participantes na X Assembleia Geral da PAV, n. 3). Como confirmação da sinceridade destes votos, desejo recordar que, durante esta Assembleia Geral da PAV, foram apresentados alguns programas concretos, de notável interesse científico, para a cura e o tratamento de algumas formas de esterilidade do casal.
O dom da fecundidade do casal, contudo, deve ser concebido de maneira muito mais ampla do que a única dimensão da fertilidade biológica. O amor esponsal, como manifestação concreta do amor de Deus pela humanidade, é sempre chamado a amar, servir, defender e promover a vida humana (cf. João Paulo II, Evangelium vitae, n. 29) em todas as suas dimensões, mesmo quando de facto não a pode gerar biologicamente. Por isso, sentindo-nos profundamente próximos dos casais de esposos, que ainda não conseguem encontrar na medicina uma solução para a sua condição de esterilidade, encorajamo-los fraternalmente a exprimir e a realizar igualmente a sua fecundidade conjugal, pondo-se com generosidade ao serviço das numerosas situações humanas necessitadas de amor e de partilha. Entre elas, merecem uma particular menção os institutos sociais da adopção e da entrega periódica da criança a uma família, para os quais desejamos normativas jurídicas cada vez mais capazes de garantir as devidas garantias e, simultaneamente, tempos rápidos para as práticas burocráticas.
10. Desejamos fazer, por fim, uma última anotação acerca da questão do papel dos parlamentares católicos face às leis injustas, no âmbito da reprodução artificial humana.
Declaramo-nos em plena sintonia com a normativa moral geral, afirmada pela doutrina católica, segundo a qual uma lei intrinsecamente injusta, que viola de modo evidente a dignidade da vida humana como por exemplo no caso da legalização do aborto ou da eutanásia deve encontrar por parte dos crentes uma firme oposição, mediante a instituição da objecção de consciência. Para um católico nunca é lícito “participar a uma campanha de opinião em favor de uma lei como esta, nem dar-lhe o próprio voto” (João Paulo II, Evangelium vitae, 73).
Contudo, a mesma ratio da norma obriga a interrogar-se sobre quais modalidades de acção podem ser consideradas moralmente lícitas, no caso em que o voto parlamentar de um ou mais católicos resultasse determinante para ab-rogar (total ou parcialmente) uma lei injusta já em vigor, ou para defender uma sua nova formulação que limite os seus aspectos. Num contexto como este, dar o próprio voto depois de ter manifestado publicamente a própria firme desaprovação pelos aspectos iníquos da mesma lei resulta justificável eticamente, na óptica da obtenção do maior bem possível e da máxima redução do dano que naquele momento pode ser causado. Com efeito, o parlamentar católico seria moralmente responsável unicamente dos efeitos derivantes da ab-rogação (total ou parcial) da mencionada lei, enquanto que a permanência dos elementos iníquos seria imputável unicamente a quem os quis e defendeu.
De resto, é necessário recordar que existe para cada pessoa, hic et nunc, o preciso dever moral de fazer todo o bem concretamente possível e não se pode negar que eliminar ou diminuir um mal constitui, em si, um bem.
11. Em conclusão, a PAV deseja mais uma vez chamar a atenção de cada homem de boa vontade a considerar a dignidade altíssima e peculiar da procriação humana, na qual se exprime no nível mais alto o amor criativo de Deus e se realiza completamente a comunhão interpessoal dos esposos. O engenho do homem e as capacidades técnico-científicas sejam, por conseguinte, postas ao seu serviço, para o bem dos esposos e dos seus filhos, sem jamais pretender, contudo, substituí-lo ou suplantá-lo.