Atualmente, há um movimento articulado que transforma leigos e ativistas em “especialistas” pela mídia. Todos estes atores juntos distorcem e literalmente inventam informações, algumas vezes por ignorância, outras com verdadeiro dolo. Uma área da ciência na qual este movimento ocorre com total força é na obstetrícia, principalmente nos temas do aborto e da via de parto. Feministas, ativistas pró-aborto, pesquisadores ligados a instituições pró-aborto, mídia com viés de esquerda, dentre outros, descaradamente, manipulam dados em busca da liberação do aborto no Brasil em qualquer situação. Mesmo os especialistas de renome consultados possuem viés fortemente favorável à causa, não havendo espaço para o contraditório. Reparem que os entrevistados neste tema são sempre os mesmos. Quando alguém que pensa “fora da caixa” dos ativistas tem oportunidade de falar, provoca um espanto tão grande que transforma uma entrevista que deveria ser técnica em um cenário de ativismo como ocorreu comigo nesta entrevista sobre via de parto na GloboNews:
O que causa bastante estranhamento nesta discussão é que são alijados dela especialistas de renome. Como um exemplo simbólico, há um projeto de Lei (PL 7633/2014) em tramitação na Câmara dos Deputados de autoria do Deputado Jean Wyllys sobre via de parto que declaradamente utilizou como assessores na confecção a ABENFO (Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras) e a Associação Artemis (ONG declaradamente feminista), não dando qualquer espaço aos que realmente serão vítimas caso o projeto seja aprovado (médicos obstetras). Como médico obstetra, doutor em ginecologia e mestre em saúde coletiva escrevo este artigo com o intuito de dar a visão de um especialista sobre o tema e esclarecer os dados relacionados ao aborto no Brasil.
1. Não há uma epidemia de internações por aborto no Brasil
O primeiro ponto que deve ser sempre lembrado é que o aborto espontâneo é muito comum. Podemos encontrar relatos na literatura de até metade das gravidezes evoluir para aborto. Isso pode se dar por diversos motivos, mas os principais são: alterações genéticas e cromossômicas, infecções maternas, traumas, dentre várias outras. E saber isso ajuda a desmascarar o primeiro mito dos ativistas a favor do aborto: não há muitas internações por aborto no Brasil. Dados do Sistema de Informações Hospitalares do SUS nos mostram que em 2016 houve cerca de 186 mil internações pós-aborto para realização de curetagem (procedimento para retirada de restos ovulares) e aspiração manual intrauterina (mesmo propósito, mas menos agressivo). Levando em conta que tivemos cerca de 3 milhões de partos neste mesmo ano, o número pode ser considerado pequeno (6,2%). Portanto, não há qualquer epidemia de internações por aborto. Na maioria das vezes, a mulher aborta antes do atraso menstrual e nem se dá conta.
Os ativistas mentem descaradamente ao afirmar que grande parte deste número é advindo de abortos provocados. Não há qualquer possibilidade de sequer estimar qual a porcentagem destes casos que pode ser creditada ao aborto ilegal. Exatamente por ser ilegal, a paciente comumente não relata que foi provocado. E mesmo quando há o relato, o médico jamais vai divulgar por conta do sigilo médico. O dado que o Datasus recebe, portanto, é do total de abortos (espontâneos, legais, ilegais, etc.). Cada morta por suspeita de aborto ilegal deve ser enviada obrigatoriamente para necropsia no IML por se tratar de morte violenta. Somente nestes casos pode ser feita a associação inequívoca da morte com o aborto ilegal. O médico hospitalar não pode fornecer a declaração de óbito em casos de mortes violentas, exceto nos raros casos em que não é possível enviar a paciente ao IML.
2. O número de mortes maternas por aborto é muito menor do que a mídia diz
A mídia é especialista em divulgar dados infundados sobre o aborto. Esta reportagem do jornal O Estado de São Paulo, por exemplo, comete erros em série. Inicia com a chamada “4 mulheres morrem diariamente por complicações do aborto”. O corpo do texto – aquele que boa parte das pessoas não lê – entretanto, afirma algo bem diferente: “o Sistema de Notificação de Mortalidade (SIM) (…) indica 54 mortes comprovadas de mulheres em decorrência da interrupção da gravidez em 2014”. O Estadão não diz exatamente de onde tirou o número que sustenta a chamada (“números do Ministério da Saúde obtidos pelo Estado”), mas é fácil deduzir: simplesmente usaram a totalidade de mortes maternas em 2015 (um total de 1738 mortes) que englobam qualquer causa, sendo as principais identificadas: eclampsia (164), hipertensão (162) e hemorragia pós-parto (127). As mortes por “falha de tentativa de aborto”, “outros tipos de aborto” e “aborto não especificado” somaram 53 no ano de 2015, um número quase 33 vezes menor.
Na gravidez, a mortalidade ocorre principalmente no parto e próximo pelos motivos mencionados (hipertensão, hemorragia, eclâmpsia, dentre outros). O aborto é somente a quinta causa clínica de mortalidade materna. Culpar o aborto pela mortalidade materna é jogar uma cortina de fumaça nos reais problemas que transformam o sistema de saúde brasileiro em um assassino de gestantes: péssima assistência, maternidades em grande parte parecendo uma pocilga, pré-natal em que é praticamente impossível conseguir ser atendido por um obstetra, falta de leitos em grande parte dos municípios, falta de treinamento de profissionais que fazem a assistência ao parto, retirada do obstetra da assistência ao parto em prol de parteiras e enfermeiros para baratear o custo em demérito da saúde, imposição do parto vaginal mesmo em situações em que não há condições com o objetivo de baratear os custos em saúde, dentre outros.
Outra matéria, agora d’O Globo, divulga um falso número de mortes maternas ligando-as ao aborto: “65 mil mulheres morreram no Brasil por complicações ao dar à luz, durante ou após a gestação ou causadas por sua interrupção.”. É notório que a mortalidade materna do Brasil é vergonhosa, mas nem em Chade, o país com a pior mortalidade materna do mundo, o número chegaria a este valor. Como dito anteriormente, houve 1738 casos de mortalidade materna no Brasil em 2015, o que já é um vexame absoluto tendo em vista que a mortalidade materna do Japão é de cerca de 3 mortes por 100 mil nascidos vivos.
3. O aborto legal no Brasil não é tão seguro quanto pregam
A mesma reportagem do Estadão afirma que o aborto legal é um “procedimento seguro”. Um detalhe mostra exatamente o contrário: utilizando dados do DataSUS de 2015 para mortes decorrentes do aborto (Figura 1) nota-se que houve 3 mortes por aborto por causas médicas e legais, ou seja, aqueles realizados no hospital com teoricamente todo o cuidado. Dado que estas mortes decorreram dos 1700 casos de abortos realizados de forma legal, temos uma taxa de 176 mortes em 100 mil! É um número espantoso que deveria obrigar os gestores a fazerem uma inspeção em todos os centros de realização de aborto legal no que se refere a material humano, ambiência e outros fatores. Este dado desmente o obstetra entrevistado na matéria que relata “ocorrer 0,5 mortes a cada 100 mil abortos legais e seguros”. Para efeito de comparação, os cerca de 60 mil homicídios anuais no Brasil correspondem a uma taxa de 30 mortes em 100 mil.
Figura 1: Três mortes por abortos por causas médicas e legais em 2015. Fonte: DataSUS
Cabe salientar que o CID (Classificação Internacional de Doenças) de aborto por razões médicas e legais (O08) compreende aqueles feitos por estupro, anencefalia e causas médicas que são exatamente os previstos na lei brasileira. Não sendo leviano como muitos ativistas a favor do aborto, lanço a hipótese destes casos poderem ser de doenças graves maternas que obrigaram a interrupção da gravidez, mas é algo a verificar e somente o Ministério da Saúde pode fazê-lo. Por outro lado, é possível que grande parte dos bons obstetras se negue a fazer abortos decorrentes de supostos estupros por objeção de consciência, direito previsto em lei para casos que não se caracterizam como emergência.
Até mesmo a mais alta autoridade na área da saúde, o ministro Ricardo Barros, soltou pérolas sobre o tema. Em entrevista dada ao Estadão, o ministro afirmou: “Recebi a informação de que é feito 1,5 milhão de abortos por ano. Desse total, 250 mil mulheres ficam com alguma sequela e 11 mil vão a óbito.” Como já vimos, o número total de abortos é um completo chute. Pode ser mais, pode ser menos. Pode ser qualquer coisa. Mas os outros dois números são irresponsáveis e fogem a qualquer lógica. O suposto número de 11 mil óbitos é quase 10 vezes maior que a real mortalidade materna total do país (1738 mortes em 2015). E número de mortes por “falha de tentativa de aborto”, “outros tipos de aborto” e “aborto não especificado”, como já vimos, foi de 53 em 2015. A ocorrência de uma morte, embora possa ter sua causa subnotificada, tem probabilidade de erro muito menor porque a declaração de óbito é necessária para efetuar o enterro, e a informação é enviada imediatamente para as estatísticas oficiais. Já o suposto número de 250 mil mulheres com sequelas supera, inclusive, o total de internações anuais por todos os tipos de abortos: 186 mil. É sabido que o aborto tem uma taxa de sequelas muito baixa e, na maioria das vezes, de menor importância. Portanto, estes números sequer podem ser chamados de chutes. É, na melhor das hipóteses, uma completa ignorância sobre o tema. Ou pior: um reflexo do fato de muitas áreas técnicas da saúde da mulher são aparelhadas por militantes pró-aborto. É fundamental que estes postos sejam ocupados por pessoas técnicas com rigor científico.
4. Os estudos sobre o aborto divulgados pela mídia geralmente são enviesados
Os números dos estudos sobre o aborto geralmente adquirem vida própria e são utilizados da forma mais irresponsável possível pela mídia e por ativistas. De forma geral, é importante, ao ler um estudo, ver quem são seus autores, seus possíveis conflitos de interesse, estudos anteriores, como foram financiados, quais agências de fomento públicas ou privadas patrocinaram seus estudos, a ideologia que possuem, se são “queridinhos” pela mídia e muitas outras variáveis muitas vezes difíceis de serem avaliadas pelos leigos.
Outro fator importante a observar é se o pesquisador é da área. É comum, no Brasil, na área de obstetrícia, os pesquisadores serem epidemiologistas, antropólogos, sociólogos, doulas, dentre outros. Muitas destas pessoas sequer sabem o que é a barriga de uma grávida do ponto de vista clínico. E, não mais que de repente, passam a ser sumidades na área da obstetrícia de dentro de suas salas refrigeradas. Pessoas que jamais viram um parto passam a dizer, por exemplo, quando se deve fazer parto vaginal ou cesariana. Algo semelhante ao que ocorre na área de segurança em que indivíduos que nunca patrulharam uma rua passam a ser considerados pela mídia “especialistas” na área.
Deve-se atentar também para o fato de que entidades mundiais de grande renome também possuem conflitos de interesses, algo perigoso dado que elas possuem poder e norteiam políticas de saúde pública pelo mundo, tornando muito difícil alguém contrário ter voz para criticar seus dados. A Organização Mundial de Saúde (OMS) é uma grande alarmista nesta questão do aborto ajudando por vezes a espalhar dados não reais. Na questão do parto, por exemplo, desde 1985 a OMS exigia que os países seguissem uma taxa irreal de no máximo 15% de cesarianas. Somente em 2016, após muita pressão, ela acabou com esta meta que impossível de ser cumprida sem expor mulheres a risco. Nenhum país desenvolvido do mundo possui taxas de cesarianas menores que 15%. A única vantagem desta taxa era baratear a assistência médica e arrumar emprego para parteiras e enfermeiros ao retirar o obstetra. Não consigo me lembrar de nenhum caso recente de filho ou parente de político que tenha tido parto vaginal, mas eles são os primeiros a defendê-lo para os mais pobres.
5. O estudo mais utilizado no Brasil para estimar a quantidade de abortos se baseia em premissas sem qualquer comprovação científica, vulgo “chute”
Um estudo bastante utilizado como fonte por ONGs pró-aborto é o de Monteiro, Adesse e Drezett (2015) publicado pela revista “Reprodução & Climatério”. A primeira crítica que faço ao estudo é que ele parece denominar o aborto ilegal como aborto “induzido” sendo que o aborto legal também pode ser induzido. Em outro momento ele se refere a “induzido e clandestino” quando seria mais clara a denominação “aborto ilegal”. Mas a situação fica crítica quando notamos que todos os resultados são baseados em estimativas que usam premissas ditadas pelo Guttmacher Institute, uma instituição fundada pela principal rede de abortos dos Estados Unidos, a Planned Parenthood. O cálculo multiplica por 5 o número de internações hospitalares usando uma premissa não validada de que, no Brasil, a cada 5 mulheres que realizam um aborto ilegal, 1 vai procurar assistência médica; e estabelece outras premissas duvidosas sem qualquer comprovação científica: um chute onde 25% dos abortos são espontâneos e há 12,5% de subnotificação.
Baseado nestas regras, sem qualquer comprovação científica, o estudo concluiu que a quantidade de abortos ilegais pode ter variado de 687 a 865 mil em 2013 e que este número tem caído com o passar dos anos provavelmente por haver um melhor acesso a métodos contraceptivos. A mídia adota este estudo como uma verdade que não merece qualquer tipo de contestação. Se eu fosse realizar uma estimativa, baseado no número real de 186 mil internações por aborto anuais no Brasil, calcularia que cerca de 25% delas foram causadas por abortos ilegais e multiplicaria este número por 2 para incluir aquelas que não procuraram o hospital, o que daria 93 mil abortos ilegais por ano. Para chegar a este cálculo partiria do princípio que, atualmente, o método mais utilizado para o aborto ilegal é o misoprostol (Cytotec) e ele tem uma baixa taxa de complicações, mas muitas mulheres que o utilizam sangram, ficam com medo de ainda terem “alguma coisa” no útero e procuram o hospital para se certificarem do sucesso do método. Outras realmente têm algum tipo de ocorrência mais séria e precisam de atendimento médico.
Quem realmente atende pacientes nota que o número de abortos espontâneos é muito maior, mesmo porque não é muito difícil diferenciar o espontâneo do ilegal. As próprias pacientes costumam falar a verdade quando perguntadas por uma questão de sobrevivência. O médico precisa saber e elas confiam nos obstetras sabendo que a grande maioria jamais quebrará seu juramento de sigilo. Eu, mesmo sendo terminantemente contra o aborto, jamais deixaria de atender uma paciente com complicações para utilizar o que ela me falou contra ela.
6. Os dados sobre o aborto no Brasil não possuem a qualidade necessária para retirar conclusões inequívocas
Um ponto muito importante que deve ser minuciosamente explicado, já que grande parte destes estudos se valem de documentos oficiais, é como os dados oficiais sobre o aborto surgem.
No Brasil, o aborto é crime salvo nas situações previstas em Lei. Portanto, como já dito, em 2015 houve cerca de 1700 abortos legais. Todo o resto será classificado pelo CID-10 em categorias clínicas ou não classificadas compreendidas entre O0-0 e O0-8. Não há nenhuma classificação para aborto ilegal. O aborto médico e legal está na categoria O0-4 e só compreende os casos de estupro, anencefalia e risco de vida materno. Logo, o número de abortos ilegais em qualquer estudo não passa de um chute.
Há dados bons e dados péssimos. O médico é o único responsável por preencher a declaração de óbito e diagnosticar se o paciente está vivo ou morto, havendo poucos erros neste diagnóstico. A via de parto (cesariana ou vaginal) também costuma ser mencionada pelo médico de forma clara. Mas quando a questão é mais complexa e é difícil obter o real diagnóstico, a confiança é muito menor. No caso do aborto, é muito provável que o médico assistente coloque como diagnóstico no prontuário algo como “restos ovulares”, “aborto espontâneo”, “aborto incompleto”, “mola”, dentre outros. O médico não tem a preocupação de escrever no prontuário exatamente como no CID-10 nem é esta a sua obrigação, sua obrigação é salvar vidas! Entretanto, cada prontuário se torna fonte para totalizar os 186 mil casos de abortos por ano no Brasil.
Fora isto, cabe lembrar que os responsáveis por encaminhar os dados para o Ministério da Saúde não são os médicos que atendem o paciente diretamente, mas os burocratas dos hospitais. Letras de médicos são normalmente difíceis de serem decifradas e, muitas vezes, o diagnóstico que o médico deu não está na lista que o burocrata consulta para enviar a informação, o que faz com que ele chute. Inclusive, se não o fizer, o hospital pode nem receber o pagamento pela internação. Dificilmente o responsável pelo envio da informação ao Ministério da Saúde procurará os médicos que atenderam diretamente a paciente para se certificar do que houve e, mesmo que o faça, o médico dificilmente lembrará. Afinal, estamos falando de hospitais com milhares de atendimentos por mês.
Ou seja: qualquer estudo baseado nestes dados sofrerá um absurdo viés que o ferirá de morte: o viés de informação. E são estes dados que alimentam os Sistemas de Informação sobre Mortalidade (SIM) e Informações Hospitalares (SIH), as bases que os pesquisadores pró-aborto utilizam para fazer suas estimativas. A literatura sobre as inconsistências nos dados é farta. Um estudo de 2016 mostrou que há fraca correlação entre o descrito na declaração de óbito e o preenchido no sistema. Outro estudo do mesmo ano mostrou uma taxa de acerto menor do que 70% nas declarações de óbito feitas por médicos professores de uma Universidade Federal, sendo que a causa da morte apresentou erro de preenchimento acima de 50%. É lógico concluir que os erros no preenchimento de prontuários relacionados ao aborto sejam iguais ou ainda maiores.
7. Não é preciso fazer boletim de ocorrência para fazer um aborto legal e a maioria dos obstetras é contra a ampliação da lei do aborto
Em 2016, um estudo avaliou todos os 68 centros de aborto legal no Brasil. Chamou atenção o fato de que, dos 1283 prontuários de aborto legal analisados no estudo, 1212 tiveram estupro como justificativa, 55 anencefalia, 9 risco materno e 7 por outras malformações graves que não a anencefalia. É absolutamente impossível saber quantos destes estupros foram reais e quantos foram mero subterfúgio para obter o aborto. Como o próprio Ministério da Saúde orienta que não há necessidade de apresentar o Boletim de Ocorrência (BO) para obter um aborto legal por estupro, este número tende a ser cada vez mais desconhecido.
Os autores do mesmo estudo relatam a capacitação escassa das equipes e a dificuldade para obter um médico-obstetra para integrar as equipes, dado que grande parte dos médicos escolheu a profissão para salvar vidas. Sobre este tema, um ginecologista que realiza abortos legais recentemente relatou em entrevista ao jornal Folha de São Paulo que a objeção de consciência não é motivo relevante para não realizar abortos citando uma pesquisa que diz que “65% dos ginecologistas acham a legislação penal do aborto restritiva demais”. O que ele não disse é que a pesquisa foi realizada em 2003 e 2005, e está bem claro nela que os obstetras consideravam isso principalmente em situações de malformações fetais graves (77% em 2003, 90% em 2005), uma questão decidida pelo STF em 2012, enquanto somente 9,7% (em 2015) declarou ser a favor do aborto em qualquer circunstância. Eu, por exemplo, sou obstetra, não concordo com ampliação e me recusaria a fazer um aborto por objeção de consciência conforme a lei me autoriza. De acordo com a pesquisa citada, a maioria dos obstetras também pensa assim.
8. O famoso estudo de Débora Diniz e salada de números que ele criou
Em 2016, foi publicado um estudo amplamente divulgado pela mídia que tem como autores Débora Diniz, Marcelo Medeiros e Alberto Madeiro. Avaliando 2002 mulheres alfabetizadas de diferentes áreas urbanas brasileiras e autointitulado “Pesquisa Nacional do Aborto 2016”, o estudo concluiu que 20% das mulheres entre 35 e 39 anos de idade (definidas como “próximas aos 40 anos de idade”) fez um aborto ao longo da vida.
Primeiro: é muito complicado avaliar por meio de questionários qualquer ato que seja ilegal. Mesmo que as pesquisadoras tenham tomado cuidado para aumentar a sensação de sigilo e utilizado a “técnica da urna” (questionário em papel respondido pelas próprias entrevistadas e depositado em uma urna lacrada), o medo existe.
Entretanto, vamos assumir que o resultado esteja correto. O problema vem logo a seguir, quando o próprio estudo e a mídia extrapolaram os resultados para todo o Brasil, relatando um valor absurdo de “503 mil abortos por ano” ou “quase um aborto por minuto” como publicou a Carta Capital: “Estima-se que, aos 40 anos, uma em cada cinco tenha feito ao menos um aborto ao longo da vida, ou 4,7 milhões de brasileiras. Somente no ano passado, 503 mil optaram pela interrupção da gravidez. Foram ao menos 1,3 mil abortos por dia, 57 por hora, quase um por minuto. Essas brasileiras são, acima de tudo, mulheres comuns. Os dados foram revelados pela Pesquisa Nacional do Aborto 2016, um dos maiores levantamentos sobre o tema no Brasil, realizado pelo Anis – Instituto de Bioética em parceria com a Universidade de Brasília e financiado pelo Ministério da Saúde.”
A suposição que me causou mais espanto e, obviamente, a mídia não se tocou ou ignorou, é que o estudo mostrou que cerca de 50% das mulheres que fizeram o aborto precisaram ser internadas para concluí-lo. Esta taxa é exatamente o valor que supus baseado na minha experiência como obstetra, com a diferença que, se usarmos os dados oficiais do Ministério da Saúde para fazer a extrapolação, temos 93 mil abortos ilegais por ano e não 503 mil. Lembrando que o número real de abortos ilegais não é conhecido.
Cabe salientar, utilizando a técnica que menciono no item 4, que o realizador deste estudo (“Anis – Instituto de Bioética”) se autodeclara como uma “ONG feminista” que desenvolveu “a estratégia da ADPF 54, em cuja decisão, em 2012, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o direito à interrupção da gestação para mulheres grávidas de fetos anencéfalos”.
9. Nada indica que a legalização do aborto diminuirá a quantidade de abortos
Este é outro ponto que os ativistas adoram afirmar: “a legalização reduzirá o número de abortos”. O bom senso e a lógica, entretanto, mostram que o número aumentaria. Logo, os ativistas citam estatísticas do Uruguai, França, Portugal e outros países que mostrariam que ocorre uma diminuição. O problema é que tal argumentação utiliza as mesmas “estimativas” (chutes) do número de abortos ilegais que menciono ao longo do texto. Ou seja, dados não confiáveis. Não há veracidade neste argumento.
Conclusão
Espero que este texto tenha ajudado a trazer alguma luz sobre os abortos no Brasil. Trouxe minha experiência de pesquisador, obstetra que já trabalhou em algumas das maternidades mais movimentadas do estado do Rio de Janeiro e ex-dirigente da Comissão de Parto, Puerpério e Abortamento da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia.
O Brasil só mudará o panorama de mortes maternas se houver investimento (não necessariamente estatal) pesado em saúde sem mentiras como “iremos diminuir a mortalidade materna se legalizarmos o aborto”, “precisamos diminuir as cesarianas” (inventando termos como “violência obstétrica” para qualquer ato médico muitas vezes necessário como episiotomia e outras manobras obstétricas) e retirando o obstetra da assistência ao parto colocando no lugar enfermeiros e obstetrizes para gastar menos. Como este texto deixa claro, estas ações são articuladas e os ativistas pró-aborto possuem ótimas relações na mídia, judiciário, artistas, opinião pública, “intelectuais” e outros formadores de opinião. Convém combatê-las com a melhor arma de todas: a verdade.