Estima-se que 200 milhões de meninas foram mortas sob o fenômeno do feminicídio. Como a comunidade internacional pode permitir tal genocídio?
A ONU considera que se perderam cerca de 200 milhões de meninas, a maioria na Índia e na China. Que modelos culturais e histórias individuais há detrás dessa assustadora estatística? Evan Grae Davis, um norte-americano que tem grande experiência nesse assunto, produziu um documentário que responde a muitas perguntas. Ele concedeu entrevista a “MercatorNet”.
É um filme angustiante: Como chegou a fazê-lo?
Evan Grae Davis: Eu tinha dedicado as duas últimas décadas a viajar pelo mundo recolhendo histórias de miséria humana para ONGs e entidades sem fins lucrativos de ajuda humanitária e desenvolvimento. Durante esse tempo, fui testemunha de muita injustiça. Comecei a me perguntar: quais são as raízes culturais e as mentalidades que permitem estas violações dos direitos humanos em larga escala? Comecei por esta pergunta o documentário. Eu e minha equipe viajamos por nove países coletando histórias para o filme.
Na Índia, deparamos com um cultura profundamente estabelecida de preferência pelo filho homem. A descoberta da epidemia de meninas desaparecidas e da drástica desproporção entre os sexos nos fez mudar de planos. Depois de conhecer as estatísticas da ONU que falam de pelo menos 200 milhões de meninas desaparecidas no mundo atual como resultado do ‘feminicídio’, investigamos o tema também na China. Ficamos estarrecidos. Poucos se dão conta do que parece ser o maior problema de direitos humanos do nosso tempo, e sem dúvida a maior forma de violência contra as mulheres no mundo de hoje.
Que práticas contribuem para o feminicídio?
A mentalidade de preferência pelo filho homem. Em culturas como da Índia e da China, a preferência por varões está respaldada por tradições seculares que dizem que os meninos são mais valiosos que as meninas. Só os meninos mantêm o nome familiar e herdam bens, ou realizam os últimos ritos dos pais quando eles morrem. As filhas se unem à família do marido quando se casam, já não sendo consideras mais parte da família de origem.
Na Índia, a preferência por meninos está também influenciada pelo costume do dote, pela qual as famílias frequentemente devem pagar grandes somas de dinheiro, dar ouro, terra ou outros bens à família do marido, quando a filha se casa. O custo de assegurar maridos para as filhas faz com que as famílias evitem ter mais de uma filha.
Na China, a política do filho único contribuiu para a eliminação de milhões de meninas nas últimas décadas. São os filhos que cuidam dos pais em sua velhice, enquanto as filhas seguem para a família do marido, como na Índia. Por isso, se uma família pode ter um só filho, está decidida a identificar o sexo na gestação e eliminar sistematicamente os fetos femininos.
No sul da Índia, escutar uma mulher relatar como ela mesma tinha estrangulado oito de suas próprias filhas recém-nascidas em sua busca pelo filho homem, foi para mim a entrevista mais impactante e difícil. Ela falava de uma forma tão natural, às vezes sorrindo, enquanto explicava como não poderia arcar com a criação de meninas, e dizia coisas como: “as mulheres têm o poder de dar a vida e o poder de retirá-la”.
Ela nos contou que tinha sido entregue em um casamento arranjado quando era jovem. Tinha 15 anos quando isso aconteceu, era boa estudante e tinha grandes projetos para o futuro. Mas foi entregue como segunda esposa do marido da sua irmã, porque esta não podia ter filhos. Ela então teria de dar um filho varão para o esposo.
Foi aí que o feminicídio adquiriu um significado novo para mim, porque percebi que ela era simplesmente um produto da cultura em que vivia. Esta mulher estava programada desde o nascimento para aceitar certas visões tradicionais sobre seu valor e seu lugar como mulher.
E a política do filho único na China?
A impressão que eu recebi após falar com ativistas e outras pessoas que trabalham para acabar com o feminicídio na China é que a natureza opressora e coercitiva da política do filho único é tremendamente impopular entre as mulheres chinesas. No entanto, elas não têm opção, devem se calar perante essa intromissão do governo em suas vidas privadas e não podem fazer nada contra o poder dos funcionários do Planejamento Familiar sobre os seus direitos reprodutivos. Quem se atreve a protestar ou se recusa submeter a essa política sofre duros castigos, que se estendem para os membros da família.
A Índia e a China precisam de ações governamentais, mas em sentidos diferentes. A China deve acabar com o planejamento familiar obrigatório. O governo indiano deve ser pressionado para que reforce as leis já existentes contra o dote, a seleção do sexo e o infanticídio.
Quais os objetivos de um movimento mundial para acabar com o feminicídio?
O primeiro é aumentar o nível de consciência sobre o feminicídio no mundo (cf.www.itsagirlmovie.com). Nossa esperança é de que haja mais mobilização. Até o momento mobilizamos 500.000 pessoas. Imagine se houvesse 10 milhões pedindo aos governos da Índia e da China justiça e igualdade para com as mulheres.
Afirma-se que o Ocidente esteja implicado no feminicídio ao promover o controle da população na Índia e na China.
Sim, o desequilíbrio de gênero na Índia, na China e em outras nações foi impulsionado pela pressão dos governos ocidentais e das ONGs de controle populacional. Para saber mais sobre isso, há um livro excelente de Mara Hvistendahl, “Unnatural Selection: Choosing Boys Over Girls, and the Consequences of a World Full of Men”.
Ainda que os desequilíbrios nas proporções entre os sexos nos países do Ocidente não sejam tão extremos como na Índia e na China, o feminicídio acontece em todos os países, em graus diversos.
(Originalmente publicado em MercatorNet)