Estreando nos cinemas, “A Garota Dinamarquesa” retrata bem os problemas emocionais dos transgêneros, mas omite as consequências da cirurgia de transgenitalização e a necessidade de tratar os transtornos psicológicos que essas pessoas enfrentam.
Walt Heyer, The Public DiscourseTradução: Equipe Christo Nihil Praeponere
17 de Fevereiro de 2016
Por alguns momentos, era como se eu fosse obrigado a assistir a um daqueles intermináveis comerciais de TV. Quando as previsíveis frases de efeito chegariam ao fim?
A Garota Dinamarquesa está repleto de sentimentos fofinhos e emocionais, projetados para convencer heterossexuais “homofóbicos” ou “transfóbicos” de que as dolorosas reviravoltas da vida de um transgênero são realmente uma busca saudável e corajosa para abraçar o seu verdadeiro eu. O filme vem à tona com pontos de discussão familiares à agenda LGBT. Em um momento chave, o personagem principal exclama ser, finalmente, quem ele é.
Baseado no romance de mesmo nome de David Ebershoff e dirigido por Tom Hooper, A Garota Dinamarquesa conta a história de Lilli Elbe, um dos primeiros pacientes conhecidos a passar pela cirurgia de mudança de sexo. O filme estrela Eddie Redmayne no papel de Einar Wegener/Lilli Elbe, o transgênero que emerge mulher. Alicia Vikander interpreta Gerda, sua devotada esposa, que ama profundamente o seu marido e permanece fiel a ele durante todos os anos de sua decadência.
Ainda que bem encenado, o filme não passa de uma ferramenta de propaganda LGBT. É verdade que pessoas com transtorno de gênero estão sofrendo. O que o filme não conta é que, muito frequentemente, pacientes transgêneros continuam a sofrer mesmo depois da cirurgia, porque os seus problemas psicológicos permanecem sem tratamento. Sei disso por experiência própria, porque eu já fui uma mulher transgênero e me arrependo de minha cirurgia de mudança de sexo.
A trama. O filme é gravado na Dinamarca, nos anos 1920. Em suas primeiras aparições, Einar, o marido, é um artista estável, com algum sucesso no mundo da arte, e não exibe nenhum aparente distúrbio de gênero ou tendência homossexual. Gerda, também artista, é uma mulher atraente que ama o seu marido, mas que se esforça por ganhar reconhecimento em sua profissão. Eles parecem ser um casal normal de apaixonados.
As coisas começam a ficar estranhas quando Gerda precisa de uma modelo para terminar uma pintura. Ela pede a Einar que a ajude posando como mulher. Obviamente, é a primeira vez que Einar faz uma coisa do tipo, e ele precisa da ajuda da esposa para vestir as macias meias de náilon. Einar deixa os seus pés caírem nas pequenas e rendadas sandálias, e assume uma pose feminina para a pintura. Ele é um assistente relutante, mas amavelmente cede aos desejos de Gerda. Eles fazem isso como uma brincadeira, mas tudo acaba indo longe demais.
Gerda é levada pelo entusiasmo de Einar posando como uma mulher. Ela encoraja a recém-criada mulher, que eles jocosamente chamam de Lilli, a ser amável e bonita. Ao desenhá-lo, Gerda descobre sua paixão inexplorada pela arte e ele, por sua vez, fica fascinado por seus retratos como mulher. O gatilho foi puxado. Einar se apaixona pelo modo como ele aparece vestido de mulher. Isso não é transsexualismo, mas um fetiche sexual, impulsionado pela força e pelo entusiasmo que o incentivo de Gerda insuspeitamente despertou. Einar começa a se travestir às escondidas e a explorar o fascínio sexual de estar vestido com tecidos macios e sedosos.
O termo médico para o comportamento exibido por Einar – um homem que se excita sexualmente com a ideia de ser ou tornar-se uma mulher – é autoginecofilia. Einar substitui o amor esponsal por sua mulher pelo amor de uma imagem no espelho e na tela de uma pintura.
A encenação atinge um novo nível quando, por alguma razão, Gerda incentiva o seu marido a acompanhá-la em uma exposição de arte caracterizado de mulher. Gerda põe uma peruca em Einar, aplica-lhe uma maquiagem e escolhe um conjunto. Ela ensina a ele como andar e se portar enquanto mulher. Na noite da festa, Gerda se diverte usando o disfarce de Einar para enganar os seus conhecidos, até que ela o flagra em um beijo romântico com um homossexual. Lilli está à solta e dando pulos de contentamento, até que Gerda finalmente percebe o que provocou.
Gerda não sabe o que fazer com Lilli, cujas aparições indesejadas e repentinas passam a ser cada vez mais frequentes. Ela se aproxima de um amigo de infância de Einar, de quem ele tinha perdido contato. Quando ela diz a Einar que seu amigo quer vê-lo, Einar conta-lhe sobre um antigo e esquecido incidente de sua juventude, quando seu amigo lhe deu um beijo por ele ser “muito bonito”.
O filme segue a sua marcha inexorável, mostrando a gradual emergência de Lilli, o completo desaparecimento de Einar, bem como a angústia, a solidão e a frustração de sua esposa abandonada, que chora a perda do homem que era o seu marido. Ver a angústia de Gerda fez-me lembrar outro filme, Uma Mente Brilhante (“A Beautiful Mind”), no qual a esposa assiste, impotente, ao declínio de seu marido rumo ao colapso mental.
Walt Heyer.
Paralelos com a minha vida. As experiências de minha primeira infância evocaram em mim os mesmos desejos que despertaram dentro de Einar. No caso dele, a experiência que influenciou sua vida futura ocorreu com um colega de infância. No meu caso, eu tive uma avó que secretamente começou a me travestir quando eu tinha quatro anos de idade. Ela costurava vestidos especiais para que eu usasse e me dizia quão bonito eu ficava modelando para ela.
Como Einar, casei-me com uma mulher e vivi como homem. Como Einar, eu me travestia em segredo e eventualmente comecei a sair em público vestido de mulher. Também eu me senti energizado pela experiência. Depois de algum tempo, meu desejo de ser uma mulher cresceu forte e eu senti que não tinha escolha, a não ser tornar-me “Laura” (o nome da minha persona feminina), a fim de “ser quem eu realmente era”. Como Lilli, eu quis matar minha identidade masculina para que Laura pudesse viver. Foi por isso que me submeti a uma transformação cirúrgica completa.
Lilli não teve a oportunidade de viver como uma mulher transgênero para comprovar se viver assim satisfaria as suas expectativas e serviria como caminho para ela encontrar a paz. Na vida real, Lilli Elbe morreu de uma infecção alguns dias depois da sua segunda operação de transgenitalização. Hoje, as técnicas cirúrgicas para transgêneros não oferecem grande risco de vida. Depois de me submeter a essa mesma cirurgia, eu vivi como transgênero por oito anos, vivendo e trabalhando por um tempo em San Francisco. Imediatamente após a cirurgia, eu exultava por ter finalmente feito a transição – mas o entusiasmo logo passou.
No decorrer do tempo, descobri que a vida como mulher não poderia me trazer a paz. Para minha surpresa, eu ainda alternava entre ser Walt e ser Laura, geralmente várias vezes em um dia. O que quer que me tivesse feito querer mudar minha identidade de gênero, não tinha sido solucionado com a cirurgia de mudança de sexo nem com a minha vida de mulher. Continuei, então, à procura de uma resposta.
Um retrato fiel, até certo ponto. O filme retratou fielmente os problemas psicológicos e emocionais pelos quais passam os transgêneros, ilustrando o quanto é difícil diagnosticá-los e tratá-los. Fez um bom trabalho ao mostrar como a inquietação com a própria identidade sexual pode começar de um incidente aparentemente pequeno na infância e, então, evoluir na vida adulta para um severo mal-estar, que eventualmente conduz à cirurgia de transgenitalização.
O público acompanha Einar, desde o seu relutante crossdressing assistindo sua mulher com a pintura, passando por sua excitação com a ideia de tornar-se mulher, até a rejeição de sua identidade masculina e de seu casamento com Gerda. Lilli deseja fervorosamente a cirurgia, mesmo que isso arrisque a sua vida. Imediatamente após a operação, Lilli aparece verdadeiramente feliz com sua decisão.
Muitos transgêneros concordariam com isso pela sua experiência. Eu vi a mesma progressão acontecer na minha vida. Contudo, dado que Lilli morreu após a segunda cirurgia, o filme só pôde retratar os seus anseios pré-transição e o efeito imediato da cirurgia, não a realidade pós-transição a longo prazo. No meu caso, a transição prometia uma vida tranquila, mas depois que a euforia inicial se foi, só me restou o desespero. Até que eu determinasse parar de viver como Laura e fizesse o que fosse preciso para ser Walt, eu não tive paz. Estar aberto a reconstituir a minha masculinidade foi o que mudou tudo.
Quando recebi um diagnóstico adequado de minha dupla personalidade, o primeiro tratamento efetivo podia começar. Levou muitos anos, mas persisti com o tratamento para o transtorno dissociativo e meus desejos de ser mulher se dissolveram até desaparecerem completamente. Aprendi que a cirurgia de mudança de sexo não era necessária. Mas já era tarde. Meu corpo tinha sido irreversivelmente mutilado.
Eddie Redmayne interpreta “A Garota Dinamarquesa”.
Desordens geram desordens. Geralmente, o diagnóstico de pacientes que se identificam como transgêneros é de “disforia de gênero”. De acordo com o DSM-5 (a última edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), a doença é caracterizada por uma acentuada incongruência entre o gênero com que a pessoa se expressa e o seu sexo biológico, com a duração de pelo menos seis meses. Ainda que não se fale muito sobre isso, estudos mostram que a maioria dos pacientes transgêneros sofre, ao mesmo tempo, com outros transtornos de comorbidade.
São bem evidentes no filme os outros transtornos de Einar. No começo, vemos os primeiros sintomas de autoginecofilia: Einar se converte em objeto da própria afeição na identidade de Lilli. Depois de ser alimentada e incentivada por um tempo, a desordem evolui para uma obsessão narcísica de autogratificação à custa do relacionamento com a sua esposa.
Das pinturas de Gerda, o desejo que Einar tem de tornar-se uma mulher se transforma em obsessão. Suas novas e poderosas emoções mudam a visão que ele possui de si mesmo como homem. Eventualmente, Lilli se dissocia de Einar, e duas personae passam a existir juntas em uma só. O nome disso é transtorno dissociativo (ou dupla personalidade). Sem perceber, Lilli assume totalmente o controle da situação e transforma Einar na mulher das pinturas de Gerda.
Lilli diz que Einar está morto, que se foi. Essa declaração demonstra mais uma desordem do que propriamente a realidade, porque é Einar quem continua ali falando. Eu fiz declarações semelhantes sobre Walt. Disse que queria a morte dele e um velório adequado para ele, a fim de que Laura pudesse viver livre. Essa é uma mente perturbada falando. Como depois se constatou, eu também sofria de comorbidade.
Os produtores de A Garota Dinamarquesa estão claramente tentando vender a popular ideia de que, preso no corpo de Einar, o que viveu não foi senão uma mulher. Não se deixe enganar pela propaganda. Olhe um pouco mais de perto, e você verá uma série de desordens mentais mal entendidas e não diagnosticadas que levaram Einar a se tornar Lilli, uma mulher transgênero. Pessoas com transtorno de identidade de gênero não nasceram assim (não são “born this way”), elas se formam a partir das experiências à sua volta, que moldam as suas emoções e os seus desejos.
Prover real assistência psiquiátrica. Quando os créditos começaram a subir, virei-me à mulher de meia idade sentada ao meu lado e perguntei-lhe o que ela tinha achado do filme. “Parecia uma propaganda!”, ela respondeu. “Vivo em uma vizinhança com pessoas que precisam de assistência psiquiátrica e que perambulam pelas ruas, e ninguém aparece para ajudá-las.”
Em certo sentido, a mesma descrição se aplica aos transgêneros: eles precisam de uma verdadeira assistência psiquiátrica, mas geralmente não têm ninguém que os ajude. Mais de 60% dos pacientes com disforia de gênero sofrem com outros transtornos: desordens psicológicas ou psiquiátricas, como dupla personalidade; fetiches sexuais, como autoginecofilia; e transtornos de humor, como depressão. Em quase todos os casos, esses transtornos poderiam ser resolvidos sem nenhuma intervenção cirúrgica, se os pacientes recebessem tratamento adequado, incluindo psicoterapia e medicação.
Uma pesquisa de 2011 descobriu que 41% dos transgêneros reportam terem tentado suicídio ao menos uma vez na vida. Tristeza e suicídios foram notados pela primeira vez em 1979, pelo Dr. Charles Ihlenfeld, endocrinologista da clínica de Harry Benjamin, mundialmente conhecido por seu trabalho com transexualidade. Depois de seis anos ministrando terapias hormonais para 500 pacientes transgêneros, Dr. Ihlenfeld disse que 80% das pessoas que queriam cirurgia de mudança de sexo não deveriam tê-la. A razão? As elevadas taxas de suicídio na população de transgêneros que foi operada. Mais surpreendente ainda, Dr. Ihlenfeld afirmou que a cirurgia de transgenitalização nunca foi intentada como uma solução a longo prazo, mas apenas como um adiamento temporário.
Ainda que suas intenções possam ser boas, muitos ativistas LGBT terminam afastando os transgêneros da verdadeira ajuda de que eles precisam. Como os seus transtornos mentais não são tratados adequadamente, a tendência é que os índices de suicídio na população de transexuais continuem altos.
Em uma cena de A Garota Dinamarquesa, um especialista diagnostica Einar com esquizofrenia paranoide. Antes que o médico voltasse com uma equipe para interná-lo, Einar foge, como é compreensível, com medo do tratamento bárbaro que o esperava. No futuro, a atual prática de recomendar a transgenitalização para quem quer que esteja insatisfeito com o seu sexo biológico será vista como um método igualmente bárbaro. E eu espero ansiosamente por esse dia.