Quem assistiu neste fim de semana à população da Irlanda sair às ruas com faixas nas mãos, braços erguidos e lágrimas nos olhos (principalmente se assistiu pelas lentes deformadas dos noticiários da TV aberta ou dos sites de notícias liberais), talvez tenha ficado com a impressão de que alguma coisa boa estivesse acontecendo. Os irlandeses teriam avançado nos “direitos das mulheres”, assegurando-lhes plena “liberdade sexual e reprodutiva”, superando “décadas de preconceito” no país et cetera.
Tantos eufemismos, porém, eram para dizer uma só coisa: que a Irlanda derrubou a Oitava Emenda de sua Constituição e… legalizou o aborto.
Talvez seja necessário lembrar, não só aos irlandeses, mas a todo o mundo, que a verdade não depende de maioria de votos.
O texto constitucional que 66,4% da população irlandesa pôs abaixo, por meio de um referendo, dizia expressamente o seguinte: “O Estado reconhece o direito à vida do não-nascido e, com a devida consideração ao igual direito à vida da mãe, garante em suas leis respeitar e, na medida do possível, defender e reivindicar esse direito”. Agora, ao invés, o que se lerá no mesmo lugar é: “Condições podem ser estabelecidas por lei para regular a terminação da gravidez.”
A nova mudança legal vem consolidar o afastamento definitivo da Irlanda de suas raízes cristãs. Um jornal brasileiro chegou a dizer que o “‘sim’ da Irlanda ao aborto” foi “um duro golpe para a Igreja Católica”.
Como cristãos católicos, precisamos reconhecer: ver o aborto legalizado, onde quer que seja, é de fato um golpe, e dos mais pesados. Mas seria o caso de nos perguntarmos se esse é um golpe apenas para a Igreja Católica e para conservadores — como a mídia em geral parece dar a entender —, ou se estamos a falar de algo maior, que afeta, no fundo, muito mais do que uma religião ou um segmento político.
Uma manchete dizendo, por exemplo, que o “sim” da Irlanda ao aborto é um duro golpe para crianças que ainda não nasceram, seria por acaso menos realista? O que é, afinal, um aborto, senão um golpe, literalmente falando, certeiro e mortífero, desferido contra um ser humano no ventre de sua mãe? A emenda constitucional que acaba de cair na Irlanda reconhecia claramente “o direito à vida do não-nascido”. A partir de agora, cabe perguntar, o que será feito desse direito? Simplesmente desaparecerá?
Por isso, o “sim” da Irlanda ao aborto é também um duro golpe para os direitos do homem. (Embora a expressão esteja hoje um tanto quanto desgastada, manipulada politicamente por grupos nem sempre preocupados de fato com a dignidade do homem, a crítica é cabível porque não há nada que repugne tanto ao senso de justiça que todo ser humano leva dentro de si do que o assassinato de um ser humano inocente, como acontece no aborto.)
Se Deus não existe, tudo é permitido, inclusive matar nossos próprios filhos.
A Irlanda pode até ter derrubado a Oitava Emenda, mas talvez seja necessário lembrar, não só aos irlandeses, mas a todo o mundo, que a verdade não depende de maioria de votos. Nem se todas as nações da terra tornassem legal o aborto (por unanimidade!) ele deixaria de ser o que é. Uma lei que autoriza um homicídio não o torna menos indigno ou menos imoral. Muito pelo contrário, são os Estados que perdem crédito e autoridade quando fazem concessões desse tipo, promulgando leis positivas diretamente contrárias à lei natural, inscrita na natureza mesma do ser humano.
Pode parecer antiquado falar disso nos dias de hoje, mas reconhecer o direito natural, “uma justiça anterior e superior à lei escrita”, é a única forma de evitar que totalitarismos como o nazismo, por exemplo, voltem a florescer. É a única forma de impor um limite ao poder dos Estados e impedir que seus decretos sejam “elaborados arbitrariamente” [1]. Ou, no caso da Irlanda, é a única forma de dizer “não” à “ditadura da maioria”, como se algo errado em si pudesse tornar-se moralmente legítimo só porque um, dois ou três terços de uma comunidade assim o quiseram e determinaram.
Como pessoas e sociedades inteiras possam ficar tão cegas assim, a ponto de não compreenderem mais a maldade de uma prática como o aborto, não é muito difícil entender. Embora o ser humano seja capaz, sempre e em todos os lugares, de reconhecer os princípios mais básicos da lei natural, o conhecimento de suas aplicações, no entanto,
[…] não é o mesmo em todos os homens e pode ser prejudicado por causas acidentais, como a força das paixões, os maus costumes ou o diverso desenvolvimento da razão e da civilização. É o que explica o fato de alguns povos terem chegado a considerar lícitos o furto ou a antropofagia [2].
Estão corretos os jornais, portanto, ao associar o resultado do referendo deste fim de semana à queda da prática religiosa na Irlanda. Quando uma sociedade se afasta de Deus e de uma moral objetiva, como a que oferece a doutrina católica, seus próprios elementos de civilização vão se perdendo…
Assim, não nos deveria assustar se, no futuro, alguns povos voltassem “a considerar lícitos o furto ou a antropofagia”. Se Deus não existe, afinal, tudo é permitido — até matar nossos próprios filhos. Quando deixam de acreditar em Deus, as pessoas passam a acreditar em qualquer coisa.
Referências
José Pedro Galvão de Sousa, Direito natural, direito positivo e estado de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 5.
Ibid., p. 16.