Numerosos elementos parecem nitidamente positivos: assim, entre outros, a recusa de todo reducionismo genético (art. 2b e 3), a afirmação da preeminência do respeito da pessoa humana sobre a pesquisa (art. 10), a recusa das discriminações (art. 6), o carater confidencial dos dados (art. 7), a promoção de comitês éticos independentes (art. 16), compromisso dos Estados de promover a educação em bioética e de favorecer o debate aberto igualmente às correntes de pensamento religioso (art. 20 e 21). Por fim, é interessante que seja previsto um procedimento para dar seguimento a aplicação da Declaração (art. 24).
Em razão da importância desse documento, a Santa Sé estima que é de seu dever apresentar algumas observações relativas aos elementos fundamentais dessa Declaração que pede aos Estados para aplicar os princípios que esta proclama (art. 22).
Relação entre a dignidade humana e o genoma humano
No artigo primeiro, declara-se que “o genoma humano subtende a unidade fundamental de todos os membros da família humana, bem como o reconhecimento de sua dignidade e de sua diversidade”: tal como está formulado, o texto parece significar que o ser humano tem no genoma o fundamento de sua própria dignidade. Na realidade, é a dignidade do homem e a unidade da família humana que conferem ao genoma humano seu valor e exigem que este seja protegido de maneira especial.
Aplicação da noção de “patrimônio da humanidade” ao genoma humano
A segunda parte do artigo primeiro declara: “No sentido simbólico, o genoma humano é o patrimônio da humanidade”. Segundo a “Nota explicativa” (n. 20), esta fórmula quer expressar a responsabilidade de toda a humanidade, excluindo de toda maneira uma apropriação coletiva inaceitável. A expressão fica todavia vaga e pouco clara; seria preferível, evitando noções como “patrimônio da humanidade”, afirmar que “a humanidade inteira tem a responsabilidade particular de proteger o genoma humano”.
Por outro lado, o genoma tem duas dimensões: uma dimensão geral, que é uma característica de todos aqueles que pertencem à espécie humana, e outra individual, que é diferente para todo ser humano, que recebe de seus pais no momento da concepção: é nesse último sentido que se fala correntemente de um “patrimônio genético” do ser humano. Parece evidente que a este “patrimônio” é que se deve aplicar uma proteção jurídica fundamental, porque este “patrimônio” pertence concreta e individualmente a cada ser humano.
Concentimento livre e informado
O art. 5a trata dos direitos daqueles que são submetidos à “uma pesquisa, um tratamento ou a um diagnóstico” sobre seu próprio genoma. Na elaboração de normas concretas, poderia ser útil distinguir entre a pesquisa; o tratamento ou o diagnóstico, porque estes requerem intervenções de natureza diferente.
O art. 5e dá indicações para uma pesquisa sobre o genoma de uma pessoa que não está em condições de expressar seu próprio consentimento. Quando tal pesquisa é efetuada sem benefício direto para a saúde do sujeito, mas no interesse de terceiros, se prevê que essa pesquisa não possa ser realizada senão a “título excepcional com a máxima prudência”. Considerando que se trata de uma investigação, e portanto de uma intervenção muito limitada sobre o paciente, esta pode ser aceita na condição de que não seja possível fazê-la de outra maneira” e, se o sujeito não é capaz de dar seu consentimento, que sejam previstas ulteriores condições: risco mínimo, consentimento dos quem têm direito, vantagens seguras para a saúde dos sujeitos da mesma categoria, falta de outros recursos e de outras possibilidades de pesquisa.
Informações sobre o resultado de um exame genético
O Art. 5c estabelece o respeito ao direito de cada um de decidir ser ou não informado dos resultados de um exame genético. Deve-se ter em conta que o direito do indivíduo interessado nesse caso não pode ser absoluto: é preciso levar em conta os casos em que tal conhecimento implica conseqüências para a saúde de outras pessoas (p. ex., dos familiares).
Além disso, seria oportuno exigir que a informação sobre os resultados dos exames seja acompanhada de uma “consulta genética” profissional.
Objeção de consciência para os pesquisadores e agentes de saúde
O art. 10 – “Nenhuma pesquisa relativa ao genoma humano, nem suas aplicações […] deveria prevalecer sobre o respeito dos direitos humanos, das liberdades fundamentais e da dignidade humana dos indivíduos ou, se for o caso, dos grupos de indivíduos” – é muito oportuno. Seria desejável incluir o respeito da eventual objeção de consciência dos pesquisadores e dos agentes de saúde, de sorte que as pessoas que trabalham nesses setores tenham reconhecido o direito de se recusar por motivo de consciência a realizar intervenções sobre o genoma humano.
Recusa da clonagem humana
O art. 11 declara que a clonagem para fins de reprodução de seres humanos é uma prática contrária à dignidade humana e não deveria ser permitida. Esta formulação não exclui, infelizmente, a clonagem humana, igualmente inaceitável, para outros fins, como para pesquisa ou fins terapêuticos.
Liberdade de pesquisa
O art. 12b reconhece justamente que “a liberdade de pesquisa […] procede da liberdade de pensamento”. É esta uma condição necessária, mas não suficiente, enquanto, para conduzir uma pesquisa verdadeiramente livre, é necessário garantir, da mesma maneira, também a liberdade de consciência e de religião. Por outro lado, a Declaração universal dos Direitos do Homem (art. 18) e o Pacto internacional relativo aos direitos civis e políticos (art. 18) colocam sobre o mesmo plano a liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Seria pois desejável que, onde se fala da liberdade de pensamento a propósito da liberdade de pesquisa, também sejam incluídas as palavras “liberdade de consciência e de religião”.
Pesquisas para a prevenção das doenças genéticas
O art. 17 incentiva os Estados a desenvolver pesquisas orientadas entre outras coisas, para “prevenir” as doenças genéticas. É preciso levar em consideração que a “prevenção” pode ser entendida de várias maneiras. A Santa Sé é contrária a estratégias de correção de anomalias fetais que se orientem para uma seleção de nascituros baseadas em critérios genéticos.
Ausência de referências ao embrião e ao feto
A declaração se limita, intencionalmente, ao genoma humano. Dessa maneira não define os titulares dos direitos que proclama; não afirma que estes direitos são de cada ser humano desde o momento no qual o patrimônio genético o converte em indivíduo. Faltan, ainda, referências ao embrião e ao feto. A questão é delicada, especialmente a propósito do embrião nos primeiros 6 a 7 dias de vida. O fato de que os seres humanos não nascidos e os embriões humanos não sejam explicitamente protegidos abre a porta, especialmente, no campo das intervenções genéticas, às discriminações e às violações da dignidade humana que, por outro lado, a Declaração pretende eliminar.
* Documento formulado pelo “Grupo Informal de Trabalho sobre Bioética” (do qual S. Exa. D. Elio Sgreccia é também membro), Secção para as “Relações com os Estados”, Secretaria de Estado (Cidade do Vaticano).