O Anteprojeto do Novo Código Penal Brasileiro (Parte I)

Entrevista com especialista em bioética, Pe. Helio Luciano

Por Thácio Siqueira

BRASILIA, segunda-feira, 6 de Agosto de 2012 (ZENIT.org) – Na quarta-feira, 27 de Julho, o Anteprojeto do novo Código Penal Brasileiro foi entregue nas mãos do presidente do Senado, José Sarney, pelos 15 juristas que o elaboraram.

Para ajudar os católicos e pessoas de boa vontade do Brasil na reflexão sobre as implicações desse anteprojeto, ZENIT entrevistou o especialista em bioética, Pe. Hélio (para ler anterior entrevista com Pe. Hélio, sobre o aborto no Brasil clique aqui), membro da comissão de bioética da CNBB.

Publicamos hoje a primeira parte. Amanhã e depois de amanhã publicaremos a segunda e a terceira parte consecutivamente.

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ZENIT: Qual é a sua opinião sobre o Anteprojeto do Código Penal entregue ao Senado Federal recentemente? Houve participação de católicos preparados em todo o período de estudo e de debate sobre o anteprojeto? O governo se interessou realmente em fazer que a sociedade debatesse todos os pontos? Houve uma aceitação das propostas enviadas pela liderança da Igreja católica, dos cristãos no geral, e de todos os que são contrários ao aborto, como os espíritas e outros grupos?

PE.HELIO – Há que se falar, antes de qualquer coisa, da necessidade premente de um novo Código Penal no Brasil. O atual está defasado, tanto pela sua “idade” – já passa dos setenta anos – como pelo fato de que, desde a sua promulgação durante o “Estado Novo”, foram promulgadas ou outorgadas pelo menos outras três Constituições no Brasil (alguns consideram que foram quatro). Neste período, o Código atual foi sofrendo diversas emendas, perdendo sua unidade e, em alguns pontos, mantendo regulamentações que já não condizem às práticas atuais. Também é necessário dizer que o texto do Anteprojeto para o novo Código Penal, apresentado pela comissão de juristas, é um texto claro, unitário e, em grande parte, em conformidade com a Constituição Cidadã de 1988.

Ainda que no seu conjunto seja um texto positivo, existem alguns pontos que contradizem tanto a nossa Carta Magna como a opinião da imensa maioria dos brasileiros. Sendo assim, minha preocupação em relação a este Anteprojeto é, em primeiro lugar, uma preocupação em sentido jurídico – um Código Penal não pode legislar afrontando a Constituição, criando ou eximindo de crime aquilo que a Carta Magna defende. Em segundo lugar, preocupa-me que alguns valores próprios de uma sociedade tentem ser desrespeitados de modo quase despótico, ou seja, sem ampla consulta à sociedade. É verdade que havia um canal de sugestões no Senado no qual foram apresentadas aproximadamente 3.000 propostas, mas pergunto-me: quantas pessoas sabiam que o código penal estava sendo reelaborado e que são 3.000 sugestões para uma população de quase 200.000.000 de habitantes?

O que reivindico – até este ponto – não tem nenhuma conotação religiosa – peço apenas o respeito à Constituição e aos valores próprios de um povo.

Em terceiro lugar – mas não menos importante – preocupa-me que em um País de imensa maioria cristã, alguns valores defendidos pelo cristianismo possam ser simplesmente contrariados. Não se trata aqui de reivindicar a presença de católicos ou de outros cristãos na comissão de juristas, mas sim de defender que os valores cristãos – próprios da nossa sociedade – fossem respeitados. Certamente a laicidade do Estado não pode ser confundida com um laicismo. A laicidade separa o Estado da religião enquanto o laicismo nega todos os valores de uma sociedade.

Finalmente, é bom lembrar que as falhas do Anteprojeto não se referem apenas às questões ligadas à vida – como o aborto e a eutanásia – mas também a outras questões importantes como, por exemplo, o uso de drogas e a aceitação de um terrorismo bom.

ZENIT: Ainda há algo a ser feito ou podemos dizer que a proposta atual é a proposta que vai permanecer?

PE.HELIO – Certamente há ainda muito a ser feito. O Anteprojeto do Código Penal, como diz o próprio nome, não é ainda nem mesmo o projeto que será submetido a votação. Agora é o momento de juristas competentes enviarem emendas ao texto. Este é o momento também da sociedade exercer sua função dentro da democracia – explicando aos amigos o que está em jogo, usando a mídia, as redes sociais, os e-mails, entre outros meios, para que não aceitemos, passivamente, que mudem a nossa sociedade naquilo que não estamos de acordo. Um modo de nos fazer ouvir também seria enviar e-mails aos Senadores e Deputados, manifestando a nossa opinião através de argumentos racionais – se um ou dois enviam, não surtirá efeito, mas se uma grande porcentagem da população começa a escrever, com certeza nos ouvirão.

O aborto, por qualquer motivo que seja, sempre deixa uma marca profunda

Entrevista com Mons. Vitaliano Mattioli, missionário italiano no Brasil

Por Thácio Siqueira

BRASILIA, quinta-feira, 09 de agosto de 2012 (ZENIT.org) – O Anteprojeto do Novo código penal Brasileiro propõe algumas mudanças que, praticamente, descriminalizará a prática do aborto no Brasil. ZENIT, portanto, conversou dessa vez com Mons. Vitaliano Mattioli, que nos fala sobre como se aprovou o aborto na Itália e as suas consequências funestas para a vida da mulher e de toda uma nação.

Mons. Vitaliano Mattioli, nasceu em Roma em 1938, realizou estudos clássicos, filosóficos e jurídicos. Foi professor na Universidade Urbaniana e na Escola Clássica Apollinaire de Roma e Redator da revista “Palestra del Clero”. Atualmente é missionário Fidei Donum na diocese de Crato, no Brasil.

Publicamos hoje a primeira parte da entrevista. A segunda parte será publicada amanhã, sexta-feira.

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ZENIT: O senhor é missionário no Brasil há 2 anos e veio de uma nação, Itália, que tem um forte movimento a favor da vida. O aborto foi aprovado na legislação da Itália?

MONS.VITALIANO: O aborto foi aprovado na Itália pela lei n. 194 do 22 de maio de 1978. Na sequência o Movimento Pro Vida promoveu um referendum para a revogação (17 de maio de 1981). Lembro-me da campanha muito acalorada a favor e contra o aborto. O resultado foi que a lei a favor do aborto foi confirmada. Não devemos esquecer a influência que teve a aprovação desta lei na França, no dia 17 de janeiro de 1975. Um importante papel tiveram os Partidos laicistas e especialmente o Partido Radical. Na campanha, a lei foi apresentada de uma forma muito ambígua: para evitar o flagelo do aborto clandestino apresentaram o aborto legal como a única solução. Eram os primeiros anos depois do Concílio. A grande desorientação que se vivia naquele período, também no mundo católico, influenciou muito essa decisão.

ZENIT: Qual é a visão dos católicos italianos e da sociedade italiana sobre o aborto?

MONS.VITALIANO: Hoje, depois de 34 anos, a situação é diferente. Há uma outra sensibilidade. Mas remover esta lei é muito difícil. Embora a verdadeira Ciência afirme sempre mais claramente que a vida começa a partir da concepção, é difícil remover uma opinião pública. Individualmente, as pessoas são mais críticas do que antes, mas há muitos interesses que impedem a revogação desta lei. Há especialmente o pansexualismo, os chamados direitos sexuais, o sexo fácil, a ideologia do Gênero que infelizmente é promovida pelos mesmos Órgãos da ONU, que formam uma mentalidade distorcida, que não escuta a razão, com a condição de continuar a viver uma vida sem regras éticas. Não devemos esquecer a forte luta contra a Igreja, que defende o direito à vida como o primeiro dos direitos. Muitos dos Meios de Comunicação social são organizados para orientar a opinião pública em favor da liberdade sexual total.

ZENIT: Na sua experiência de guia familiar, o que acontece com um casal que resolve abortar por motivos econômicos?

MONS.VITALIANO: O aborto, por qualquer motivo, sempre deixa uma marca profunda. As diferentes situações, por exemplos as econômicas, podem diminuir a responsabilidade do casal, mas não tocam na gravidade do ato. Sabe-se, contudo, que a situação económica não é a causa principal e a maioria dos abortos não acontece por este motivo. É só pensar na quantidade de adolescentes que a cada dia abortam. E este número aumenta continuamente. Não têm razões econômicas. O trauma é sempre muito grande. As vezes não se nota imediatamente, mas sim depois de muitos anos. Especialmente se o aborto foi realizado em uma idade jovem, com grande inconsciência e irresponsabilidade. No começo aciona-se um sistema psicológico de proteção mas em seguida, com o tempo, e uma maior maturidade, a mulher toma consciência e se envolve num sentimento de culpa que permanece por toda a vida. Pessoalmente conheci mais de uma pessoa octogenária que comentou com muita tristeza: eu matei meu filho porque quando era jovem pratiquei um aborto.

ZENIT: Existe alguma circunstância extrema na qual a Igreja permita abortar?

MONS. VITALIANO: A Igreja deve ser coerente com a doutrina expressa pela lei natural e afirmada na Sagrada Escritura: cada vida humana é sagrada desde a concepção até a morte natural. Esta firmeza na doutrina é muitas vezes confundida com uma falta de sensibilidade, de respeito, e de compreensão da Igreja para com a mulher. Não é assim. Quando a Igreja condena o aborto se refere ao fato de abortar, que é sempre intrinsecamente ilícito. Nunca a Igreja tem falado contra a mulher que infelizmente teve um aborto. A Igreja é uma mãe que compreende as situações humanas, a fraqueza e os condicionamentos sociais. Tudo isso pode diminuir a responsabilidade da mulher, mas não pode alterar o juízo ético negativo sobre a ação cometida. A Igreja segue a pedagogia aplicada por Jesus. No Evangelho de João, à jovem adúltera, o Mestre respondeu: “Ninguém te condenou? Nem eu te condeno. Vai, mas de agora em diante não peques mais” (João 8, 11). Jesus, compreendendo as diversas circunstâncias, perdoou a jovem mas ao mesmo tempo a fez compreender que a sua atitude estava errada e que não deveria nunca mais repetí-la.

A ação libertadora da confissão

Fundador dos Franciscanos da Imaculada explica como o sacrifício de Jesus libertou a humanidade do pecado

Padre Stefano Maria Manelli *

ROMA, sexta-feira, 3 de agosto de 2012 (ZENIT.org) – No Jardim das Oliveiras, Jesus fez o exame de consciência da humanidade. Todos os pecados dos homens de todos os tempos, toda a fealdade, a vergonha, os horrores e os sofrimentos, as dores e as tristezas, para pagar pelos crimes da humanidade: este foi o exame de consciência do gênero humano, sofrido por Jesus com tamanha angústia mortal que o fez suar sangue até banhar-lhe o corpo e a terra.

Contemplando Jesus a suar sangue no Jardim das Oliveiras, deveríamos abrir os nossos olhos para a realidade do pecado, para nos horrorizarmos e chorar lágrimas de sangue, como as que chorava São Francisco de Assis.

Recordemos o clamor materno de Nossa Senhora em Fátima: “Não ofendam mais o Senhor nosso Deus!”. O pecado é o sofrimento de Jesus. Seus tormentos e suas gotas de sangue são todos os nossos pecados. Se pensássemos seriamente sobre isto, não ficaríamos tão indiferentes nem nos tornaríamos tão facilmente escravos do pecado.

Uma vez, olhando para um crucifixo, a pequena Jacinta de Fátima perguntou a Lúcia:
– Porque Nosso Senhor está assim, pregado numa cruz?
– Porque ele morreu por nós.
– Então me conte como foi.

E Lúcia contou a Jacinta toda a Paixão e Morte de Jesus. “Ao ouvir narrar os sofrimentos do Senhor,a pequenina se comoveu e chorou… Ela chorou amargamente e dizia: ‘Pobre Jesus! Eu não vou cometer nenhum pecado! Eu não quero que ele sofra mais!’”.

A dor e o propósito de Jacinta são o fruto do verdadeiro exame de consciência. A dor sincera leva a não cometer mais pecados para não ferir Jesus e não o fazer sofrer.

Por outro lado, o pecado é também a causa de muitos castigos e problemas que afligem a humanidade. Lembremo-nos do que Jesus disse ao paralítico depois de curá-lo: “Vai e não peques mais, para que não te suceda coisa pior” (Jo 5,14).

Na segunda aparição, Lúcia de Fátima pediu a Maria pela cura de uma pessoa doente, e Nossa Senhora disse: “Se ela se converter, ficará curada ainda este ano”. Faltas e pecados são a causa dos nossos males e castigos. Na terceira aparição, Nossa Senhora também disse: “Se os homens não pararem de ofender a Deus, explodirá uma nova e mais terrível guerra… Deus… punirá o mundo pelos seus crimes com a guerra, com a fome, com a perseguição contra a Igreja e contra o Santo Padre”.

Os pecados são a perdição do mundo. Se amamos a humanidade, paremos de pecar. Nós temos que lutar contra todo pecado, em especial através da penitência, e da penitência sacramental, isto é, a confissão.

A confissão é o sacramento do perdão, que destrói os nossos pecados. Quem odeia o pecado, ama a confissão, porque bem sabe que a confissão apaga a própria sombra do pecado na alma. Mais: sabe que a confissão torna a alma pura e resplandecente e muito cara a Jesus.

Na vida de Santo Antônio de Pádua, lemos que um dia foi até ele um grande pecador que pretendia se confessar. O arrependimento sincero, no entanto, fazia chorar o pecador tão irrefreavelmente que ele sequer podia contar os seus pecados. O santo disse a ele: “Veja: vá escrever os seus pecados e volte para lê-los”. O penitente obedeceu e foi escrever os seus pecados numa folha de papel. Voltou até o santo, se ajoelhou aos seus pés e começou a ler a lista de pecados. E qual não foi a sua surpresa ao perceber que, terminada a leitura e recebida a absolvição sacramental, a folha em que ele havia escrito os seus pecados tinha-se tornado toda branca!

Este é o resultado da confissão sincera dos pecados: a alma é lavada pelo Sangue divino de Jesus e fica iluminada pela graça. Por esta razão, São Francisco de Assis se confessava três vezes por semana, e muitos outros santos se confessavam até diariamente.

Nós, além da confissão todo primeiro sábado do mês, não devemos nos esquecer da confissão todas as semanas, de acordo com a mais sadia e sábia norma da verdadeira vida cristã. Sem a confissão frequente, semanal, nunca amadurecerá em nós a dor do pecado e o crescimento do amor puro diante do sofrimento de Jesus e do Coração Imaculado de Maria circundado de espinhos.

Virtudes a praticar: a dor do pecado.

Para aprofundamento: Pe. Stefano Maria Manelli, “Ó Rosário bendito de Maria”.

* O pe. Stefano Manelli, fundador da ordem religiosa dos Frades Franciscanos da Imaculada, é um dos autores católicos que mais livros venderam. Seus escritos foram impressos em milhões de cópias, com vários tendo sido traduzidos para diversos idiomas. Entre os de maior circulação, “A devoção a Nossa Senhora”, “Jesus Eucarístico Amor” e “Maio, Mês de Maria”.

Vida e Dignidade humana (parte I)

Entrevista com Dr. Ivanaldo Santos, filósofo, pesquisador e professor universitário

Por Thácio Siqueira

BRASILIA, quinta-feira, 26 de julho de 2012 (ZENIT.org) – O atual debate sobre a Reforma do código penal brasileiro, com a proposta de descriminalização do aborto, etc, está mostrando que estamos vendo chegar ao Brasil propostas de leis contrárias à vida, à moral cristã, e, filosóficamente contrárias ao próprio desenvolvimento e progresso da nação.

Para ajudar nesse debate ZENIT entrevistou o Dr. Ivanaldo Santos, doutor em filosofia e autor de inúmeros artigos em revistas especializadas de todo o mundo, perguntado-lhe o significado da vida, visto desde a filosofia.

O Dr. Ivanaldo Santos é filósofo, pesquisador e professor universitário. Publicou mais de 70 artigos em revistas científicas nacionais e internacionais e tem 8 livros publicados.

Publicamos hoje a primeira parte da entrevista. A segunda parte será publicada amanhã, dia 27 de Julho.

ZENIT: O que é a vida, filosoficamente falando?

DR. IVANALDO:Do ponto de vista estritamente da filosofia não é possível se construir um conceito fechado de vida. Vale lembrar que as tentativas de conceitos fechados de vida conduziram a experiências trágicas, como é o caso dos campos de concentração no regime nazista. Na verdade vida, podemos assim falar, é a grande manifestação do logos, que engloba, entre outras coisas, a dimensão biológica, cultural, familiar, psicológica, social e religiosa. Vida é o mais amplo e complexo movimento que o ser humano tem acesso.

ZENIT: A vida é propriedade do homem?

DR. IVANALDO:Nos últimos séculos, devido, em grande medida, as experiências oriundas do capitalismo e do estatismo socialista, tem se discutido muito a noção de propriedade. Fala-se, por exemplo, em propriedade privada, em propriedade intelectual e em propriedade do Estado. Nos últimos anos essa discussão chegou até mesmo a vida humana. Com isso, passou-se a discutir sobre a propriedade de medicamentos, tratamentos de doenças e até mesmo do genoma humano. Além disso, é preciso esclarecer que contemporaneamente o mundo vive um retrocesso nas relações trabalhistas e nos direitos humanos.  Por exemplo, temos o retorno da escravidão, a exploração de mulheres para fins sexuais, são as chamadas escravas do sexo, o trágico de sangue e órgãos humanos, uma política agressiva de legalização do aborto e do infanticídio, dentro do mercado de trabalho está sendo aceito largamente o trabalho precarizado e semi-escravizado, como o que acontece em muitas fábricas na China e em outros países que, são apresentados, como modelos de desenvolvimento econômico. Dentro desse triste quadro passa a haver uma visão reducionista que a vida é um simples objeto comercial, uma propriedade, que, como toda propriedade, é possível se vender e comprar. No entanto, a realidade ontoética do ser humano é bem diferente. O ser humano é a única espécie capaz de refletir filosoficamente sobre si mesma e sobre, a sociedade e o cosmo. Ele é capaz de construir a arte, a poesia e tudo mais que existe de belo e sublime na sociedade. Trata-se, por conseguinte, de uma grande responsabilidade. A vida humana é um patrimônio de Deus e de toda a sociedade. Por isso é preciso valorizar todas as formas e manifestações da vida humana, como, por exemplo, a vida das populações pobres, de regiões isoladas, de mulheres em risco de prostituição, dos deficientes físicos, e do feto, o bebê ainda no ventre da mãe. É por esse motivo que não se pode aceitar e incentivar a cultura da morte, uma cultura que tem como “comércio” a venda da morte para os seres humanos. Essa cultura, ou melhor uma anti-cultura, se manifesta, por exemplo, no retorno da escravidão, na exploração de mulheres para fins sexuais, na tentativa de legalização do aborto, da eutanásia, do infanticídio e de outras barbaridades.

ZENIT: Em ordem de importância, qual vida é mais importante: a vida humana ou a vida animal?

DR. IVANALDO:Inicialmente é preciso esclarecer que todas às formas de vida devem ser valorizadas, preservadas e respeitadas. Sem dúvida que os maus tratos a animais selvagens e domésticos não devem ser aceitos. Nesse sentido tem havido no mundo, inclusive no Brasil, um avanço na legislação de proteção aos animais. Entretanto, é preciso esclarecer que a proteção aos animais passa pela proteção e valorização da vida humana. Em muitas ocasiões, o ser humano é o destruidor da natureza e da vida selvagem, mas também é o promotor da cultura, da arte e da própria preservação da vida animal. Do ponto de vista ontoético, a vida humana é mais sublime e mais especial do que a vida animal. É claro que devemos promover a defesa da vida animal, mas, por compromisso ético, temos que respeitar, promover e garantir as condições socioculturais de desenvolvimento da vida humana. Neste sentido a vida humana tem prioridade sobre a via animal. Isso não significa que vamos sair por aí matando animais, mas, pelo contrário, temos que garantir a, num primeiro plano, a dignidade da vida humana e, num segundo plano, a vida animal. Levando em conta o desenvolvimento econômico e científico do mundo, afirma-se que há condições técnico-científicas suficientes para a realização dessa tarefa.

Para mais informações: Ivanaldo Santos, doutor em filosofia. Email: ivanaldosantos@yahoo.com.br.

QUARESMA 2012

À procura de Deus

Reflexões de Quaresma, por Dom Alberto Taveira Corrêa, Arcebispo Metropolitano de Belém

Por Dom Alberto Taveira Corrêa

BRASILIA, terça-feira, 20 de março de 2012 (ZENIT.org) – Os Evangelhos mostram Jerusalém como a meta do caminho de Jesus. Lá ele se entregou até o fim, morreu e ressuscitou. E justamente no centro do culto e da doutrina, onde se achava o templo, não foi acolhido. Muitos se aproximam do Senhor, mas aparecem logo os contrastes. Há grupos que fazem perguntas a Jesus, mais interessados em preparar-lhe armadilhas. “Com que autoridade fazes isso?” (Mc 11,29), perguntam-lhe instigados pela ação de Jesus, que purifica o Templo. Provocam-no a respeito do tributo a César (Mc 12,13-17), querem saber do mandamento mais importante, ou os saduceus questionam a ressurreição dos mortos (Mc 12, 18-27).

Da Jerusalém do mistério pascal de Cristo brotou o anúncio de seu nome e da salvação que ele oferece, percorrendo as estradas ou atalhos da história. Naquela cidade se revelaram os recônditos do coração humano que busca Deus. Sabemos que muitos foram de longe para conhecer Jesus. Lá no início, foram homens chegados do oriente, viajando atrás de uma estrela. No decorrer da vida pública de Jesus, eram cegos, surdos, mudos, coxos, aleijados, prostitutas, publicanos e outras classes de pecadores públicos. Acorriam a ele escribas e fariseus, pobres e ricos, maus e bons. Afinal, o convite era dirigido a todos! As decisões das pessoas foram tomadas pouco a pouco. E nos séculos e milênios que se seguiram, muitos o procuram. E nós fazemos parte da incontável multidão dos que são sedentos de Deus!

Em Jerusalém, quando estava para se concluir a atividade de Jesus, abre-se uma janela para a conversão dos pagãos! São homens que acorreram à cidade para a festa. Chega a hora da glorificação de Jesus! Pela paixão e morte ele chegará à glória, como ilustra a comparação do grão de trigo, sepultado na terra para dar fruto. A mesma sorte caberá aos seguidores de Jesus, que hão de acompanhá-lo onde quer que ele vá: à cruz e à glória. Revistamo-nos da pele daqueles estrangeiros que se aproximaram dos apóstolos, desejando ver Jesus (Jo 12,20-33), para descobrir dentro de nós mesmos e em tantas pessoas as perguntas autênticas.

Há coleções de livros que retratam vidas célebres. Posto ao lado de personagens históricos, pode até parecer que Jesus Cristo seja apenas um mestre a mais, dentre tantos outros. Sua sabedoria viria a ser comparada com outras figuras que marcaram época. Os cristãos sabem que ele é infinitamente maior do que qualquer sábio de qualquer tempo. O que atraiu os estrangeiros que foram aos apóstolos querendo “ver Jesus” é sua originalidade. Ver, no Evangelho de São João, é aproximar-se para crer! Crer é mais do que curiosidade, mais do que a emoção, muito mais do que um vago sentimento religioso.

A Jesus se vai não para negociar milagres ou favores. Diante dele caem todas as provocações e eventuais exigências ou cobranças. Desconcertadas ficaram todas as pessoas que acorriam para provocá-lo. Intrigados ficaram todos os Pilatos ou os Herodes da história. Nos Sinédrios e Tribunais de todos os tempos, que se reuniram para analisar sua doutrina ou julgá-lo, mesmo quando o condenaram ou aos seus discípulos, deixou-lhes dentro do coração o terrível incômodo de não terem aderido à verdade que se apresentava (cf. Mt 27,11-26; Jo 18,28 –19,16). Ele lhes escapa sempre, continuando o caminho, como fez em Nazaré (Lc 4,30).

“Jesus Cristo é a boa nova da salvação comunicada aos homens de ontem, de hoje e de sempre; mas, ao mesmo tempo, ele é também o primeiro e supremo evangelizador. A Igreja deve colocar o centro da sua atenção pastoral e da sua ação evangelizadora em Cristo crucificado e ressuscitado. Tudo o que se projeta na Igreja deve partir de Cristo e do seu Evangelho. Por isso, ela deve falar cada vez mais de Jesus Cristo, rosto humano de Deus e rosto divino do homem. É este anúncio que verdadeiramente mexe com os homens, que desperta e transforma os ânimos, ou seja, que converte. É preciso anunciar Cristo com alegria e fortaleza, mas, sobretudo com o testemunho da própria vida” (Ecclesia in America 67).

A todos os interlocutores, sinceros ou não, Jesus se apresenta como aquele que é Caminho, Verdade e Vida. Será sempre nova e provocante a caridade que o levou a entregar-se à morte no seu amor pelo mundo! Não dá para ficar indiferente diante de sua pessoa. Quero homenagear as pessoas inquietas, que desejam saber mais, aquelas que têm no coração muitas perguntas que perturbam e para as quais só Deus é a resposta. Que ele mesmo abra as portas da fé para todos os homens e mulheres que acorrem à Igreja. Peço ao Senhor, às portas da Semana Santa e da Páscoa, que nós, cristãos, digamos com a vida o que celebraremos dentro da Igreja. Que ninguém passe em vão ao nosso lado, mas saibamos levar, como Filipe e André, até Jesus Cristo, a humanidade suplicante de nosso tempo, que quer vê-lo e segui-lo.

*Dom Alberto Taveira é Arcebispo Metropolitano de Belém do Pará e acumula também essas outras funções na Igreja: Bispo Assistente Nacional da Renovação Carismática Católica, Por nomeação da Santa Sé é Assistente Internacional das “Comunidades Novas nascidas da Renovação Carismática Católica, membro do Conselho Administrativo da Fundação “Populorum Progressio”, Presidente da Fundação Nazaré de Comunicação, preside anualmente o “Círio de Nazaré” e é membro da Comissão Episcopal para os Textos Litúrgicos.

Bioética e direitos de personalidade do nascituro

Silmara J. A. Chinelato e Almeida

Resumo

Nascituro é a pessoa por nascer, já concebida no ventre materno. No Brasil tem-se três correntes fundamentais acerca de sua natureza jurídica: a natalista, em que se afirma que a personalidade civil começa do nascimento com vida, conforme o artigo 4° do Código Civil, mas não explica as expectativas de direitos e baseia-se no Direito Romano, que não considerava o nascituro como pessoa, a da personalidade condicional que reconhece a personalidade desde a concepção, mas condiciona ao nascimento com vida, deixando à margem os Direitos da Personalidade, tal como o direito à vida, que não depende do nascimento com vida e a concepcionista que sustenta que a personalidade começa da concepção. A personalidade não se confunde com a capacidade e aquela não é condicional, apenas certos direitos patrimoniais dependem do nascimento com vida. Os Direitos da Personalidade são as faculdades jurídicas cujo objeto são os diversos aspectos da própria pessoa do sujeito, bem assim seus prolongamentos e projeções. O Código Civil não tutelou sob tal denominação, mas reconhece-os em vários dispositivos. R. Limongi França classifica de forma tripartite os Direitos da Personalidade: Direito à Integridade Física, Direito à Integridade Moral é Direito à Integridade Intelectual. Classificamos em quatro categorias, colocando o Direito à Vida como categoria autônoma, não integrante do Direito à Integridade Física. O Direito à vida é o primordial e condicionante já que sem este os outros inexistem. O Direito à Integridade Física não se confunde com a da mãe e as diversas técnicas médicas intra-uterinas demonstram esta preocupação com o nascituro em qualquer fase de desenvolvimento, aponta-se aqui a indenização de danos pré-natais previsto no Direito Estrangeiro. O Direito à imagem diz respeito à reprodução física da pessoa, por qualquer meio de captação, incluindo a ultra-sonografia. O Direito à honra existe desde o momento da concepção. Assim, enfatiza-se que os Direitos da Personalidade iniciam-se desde a concepção e ultrapassam a morte. O Direito de Personalidade do Embrião Pré-Implantatório por constituir espécie do direito à identidade e opõe-se ao anonimato exigido dos doadores de gametas, sendo que a destruição da identidade dos pais genéticos implica em responsabilidade civil, por dano moral, pela violação de direito da personalidade.

 

Scientia Iuris

ISSN (eletrônico) 2178-8189

ISSN (impresso) 1415-6490

E-mail: [email protected]

 

O aborto e o infanticídio

Ladeira escorregadia

John Flynn, LC
ROMA, quarta-feira, 14 de março de 2012 (ZENIT.org) – “Quando eu uso uma palavra”, disse Humpty Dumpty, em tom de desdém, “ela significa o que eu quero dizer. Nem mais nem menos”.

Este trecho de Alice no País do Espelho, de Lewis Carroll, foi retirado de uma narrativa ficcional, mas é muito adequado para descrever o artigo Aborto após o nascimento: por que a criança deveria viver?, publicado em 23 de fevereiro no Journal of Medical Ethics.

Os autores, Alberto Giubilini e Francesca Minerva, acadêmicos em Melbourne, Austrália, argumentam que “o que chamamos de aborto após o nascimento (o assassinato de um recém-nascido) deveria ser permitido em todos os casos em que o aborto também o é, inclusive naqueles em que a criança não é deficiente”.

O aborto é permitido quando o feto sofre de algum tipo de malformação ou doença, ou até por motivos econômicos, sociais e psicológicos, disseram eles. E na Holanda, de acordo com o Protocolo de Groningen de 2002, as crianças que tiverem um “prognóstico sem esperança” também podem ser mortas.

Em vez do termo infanticídio, universalmente aceito para descrever o procedimento, eles adotaram a expressão “aborto após o nascimento”.

“O status moral de uma criança é equivalente ao de um feto, no sentido de que que a ambos faltam as propriedades que justificam o reconhecimento do direito de um indivíduo à vida”, proclamaram os autores.

Eles não colocaram qualquer limite sobre quanto tempo após o nascimento o chamado “aborto” deveria ser permitido. Apenas notaram que, normalmente, as deficiências são descobertas em poucos dias.

Quando a justificativa é por motivos não-médicos, os autores também omitiram qualquer período de tempo, dizendo que dependeria apenas do desenvolvimento neurológico da criança recém-nascida.

Discussão razoável

Como era de se esperar, o artigo de Giubilini e Minerva despertou muitas críticas. Em resposta, o editor do Journal of Medical Ethics, Julian Savulescu, escreveu no blog da revista em 20 de fevereiro que o perturbador não era a proposta dos autores de usar a expressão “aborto após o nascimento”, mas sim as reações hostis ao que ele chamou de “qualquer tipo de discussão razoável”.

Em uma carta aberta, publicada em 2 de março no site da revista, os autores do artigo se declararam surpresos com a reação hostil, dizendo que “tratava-se de um mero exercício de lógica”.

A tática dos autores de descrever o artigo como um exercício intelectual tinha sido antecipada por Bill Muehlenberg em artigo publicado no dia anterior no site australiano Line Opinion.

“Nas décadas que precederam o Holocausto, muitas posições acadêmicas e declarações abriram caminho para o que Hitler e os nazistas fizeram”, afirmou ele.

“Usar a sala de aula e as revistas acadêmicas para defender com frieza e com calma a matança de crianças não é sinal de profissionalismo nem de progresso. É um sinal de barbárie e de retrocesso”.

As ideias têm consequências, disse por sua vez Stammers Trevor, em artigo publicado no dia 5 de março no site Mercator Net: “Simplificando, toda revolução social começa com uma ideia. As ideias de Giubilini e Minerva não são uma exceção e têm relevância além do mundo acadêmico”.

“Como pai de uma criança com síndrome de Down, os argumentos deles me dão nojo”, disse David Warren, escrevendo em 2 de março no jornal canadense The Ottawa Citizen. “É verdade”, admite Warren, “que outros, como o bioeticista Peter Singer, já apoiaram o infanticídio. Além disso, Singer defende também a aceitação da bestialidade”.

Matar crianças e fazer sexo com animais é normal na ética de camarilha, diz o título de um artigo de Rod Liddle no Sunday Times deste fim de semana. Liddle ridiculariza Peter Singer, dizendo que ele não carecia apenas de bom senso, mas de toda lógica.

Gerald Warner, no Scotland on Sunday, observou que “o lugar mais perigoso do mundo para uma criança na Escócia é o útero da mãe. Em 2010, a mortalidade infantil levou 218 crianças escocesas à morte. O aborto, 12.826”.

Niilismo ético

Embora a promoção do “aborto após o nascimento” seja um bom exemplo do que chamou de niilismo ético, Warner nota que os autores fizeram um favor à causa pró-vida. “Eles deixaram de lado os eufemismos sutis, as mentiras e os enganos anti-científicos dos lobistas pró-aborto, e chamaram o pão de pão e o queijo de queijo”, disse ele.

No australiano Daily Telegraph, Andrew Bolt escreveu: “Não há um limite claro depois que você apaga a linha do absoluto que diz: não matar o bebê no útero da mãe”. A ladeira é escorregadia, prossegue Bolt, e este caso demonstra o quanto.

Em 7 de março, Barney Zwartz, editor de religião no Age of Melbourne, também da Austrália, escreveu que um passo fatal foi dado no debate sobre a vida quando o conceito de “qualidade de vida” substituiu o do “valor da vida” nessas discussões.

O pai de uma criança com síndrome de Down afirmou: “Afirmar que você está seguindo uma lógica não é, de modo algum, uma justificativa. A lógica é uma ferramenta, cuja utilidade depende das premissas com as quais ela funciona. Não é um bem em si mesma”.

Estes princípios morais firmes são ainda acusados ​​de “excessiva rigidez”. O episódio descrito aqui demonstra o que a “flexibilidade” pode se tornar quando o tema em questão são os princípios morais fundamentais.

Acordar da anestesia espiritual

Reflexão de Frei Patrício Sciadini sobre a mensagem do Papa para esta Quaresma
ROMA, segunda-feira, 12 de março de 2012 (ZENIT.org) – Apresentamos a reflexão de Frei Patricio Scaidini enviada à ZENIT para “nos acordar do nosso sono letárgico espiritual”, conforme a mensagem do Papa para esta Quaresma.

Não tenho receio em definir a mensagem para esta quaresma 2012 do Santo Padre o Papa Bento XVI, uma das mais belas de todas as quaresmas, desde que o Papa começou a enviar uma mensagem especial. Simples na linguagem, direta, que nos obriga não a uma leitura rápida, mas sim a uma leitura demorada, meditativa, contemplativa, a voltar mais vezes ao texto para perceber como atrás de cada palavra o Papa quer nos acordar do nosso sono letárgico espiritual, que ele chama “anestesia espiritual”. O coração da mensagem é tirado da Carta aos Hebreus 10,24: “Olhemos uns pelos outros para estimularmos a caridade e as boas obras.”

Devo reconhecer que eu nem sabia deste texto e nem conhecia. A palavra de Deus é de uma riqueza que não se esgota numa só leitura. Cada um a lê segundo o momento particular que vive, pessoal ou comunitariamente, ou eclesial ou mundialmente. O olhar do Papa que conhece a realidade do mundo e o momento de “crise” que passa, vê que o ser humano está como “anestesiado” diante do outro. O outro não interessa, e um número que nos passa perto, uma fantasma e não uma pessoa amada, parte de nós mesmos. Atenção ao outro exige que se deseje para o outro todo o bem.

A pessoa não pode ser feliz a pedaços, como pedras de mosaico, separadas umas das outras, mas no seu conjunto: a felicidade, o bem e a globalidade da pessoa que se realiza no seu todo. Não há felicidade quando falta o pão na mesa, o trabalho, os meios para curar-se das doenças, o alimento cultural que gera desenvolvimento. É preciso uma revolução a partir de dentro de nós mesmos, que nos coloque diante do outro como nosso irmão e deseja para o outro o que nós desejamos para nós.

A Sagrada Escritura adverte contra o perigo de ter o coração endurecido por uma espécie de «anestesia espiritual», que nos torna cegos aos sofrimentos alheios. (n. 1)

Na verdade os sacerdotes levitas não maltratam quem tinha caído nas mãos dos ladrões e estava meio morto à beira da estrada, nem o ofenderam, nem tampouco cuspiram nele. Mas passaram e viraram o olhar ao outro lado. É o pecado da indiferença que está se tornando a cultura dominante do mundo. Não dar importância ao outro. A quaresma é o momento em que devemos nos acordar da anestesia, sentir dor não só pelas nossas feridas, mas também as dos outros. A vida cristã não é uma filosofia e um discutir sobre os problemas, mas sim ver, julgar e agir… Sem ação direta não haverá mudanças de estruturas e de estilo de vida, nem compromisso social que leve o ser humano a uma vida mais digna.

* Frei Patrício Sciadini, ocd, religioso, Carmelita Descalço, escreveu mais de 60 livros, publicados no Brasil e no exterior, atualmente é o delegado geral no Egito.

SANTO ATANÁSIO E A FÉ NA DIVINDADE DE CRISTO

Primeira pregação da Quaresma do Padre Raniero Cantalamessa

CIDADE DO VATICANO, sexta-feira, 9 de março de 2012 (ZENIT.org) – Publicamos o texto da primeira pregação da Quaresma do padre Raniero Cantalamessa, O.F.M. Cap., pregador da Casa Pontifícia, pronunciada hoje de manhã na Capela “Redemptoris Mater”, no Vaticano, na presença do Papa Bento XVI.

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Em preparação para o ano da fé proclamado pelo Santo Padre Bento XVI (12 de outubro de 2012 -24 de novembro de 2013), as quatro pregações da Quaresma têm a intenção de retomar o impulso e o frescor da nossa fé, através de um contato renovado com os “gigantes da fé “do passado. Daí o título, retirado da carta aos Hebreus, e que foi dado para todo o ciclo: “Lembrai-vos dos vossos dirigentes, que vos anunciaram a palavra de Deus. Imitai-lhes a fé” (Hb 13,7).

Iremos cada vez para a escola de um dos quatro grandes doutores da Igreja oriental – Atanásio, Basílio, Gregório Nazianzeno e Gregório de Nissa – para ver o que cada um deles nos diz hoje, sobre o dogma do qual foram o defensor, ou seja, respectivamente, a divindade de Cristo, o Espírito Santo, a Trindade, o conhecimento de Deus. Em outro momento, se Deus quiser, vamos fazer a mesma coisa com os grandes doutores da Igreja do Ocidente: Agostinho, Ambrósio, e Leão Magno.

O que gostaríamos de aprender com os Padres não é tanto como proclamar a fé no mundo, ou seja, a evangelização, e nem sequer como defender a fé contra os erros, ou seja, a ortodoxia; realmente o que queremos é o aprofundamento da própria fé, redescobrir, por trás deles, a riqueza, a beleza e a felicidade do crer. Passar, como diz Paulo, “de fé em fé” (Rm 1,17), de uma fé que se acredita à uma fé vivida. Será justamente um grande crescimento “voluminoso” de fé dentro da Igreja que constituirá depois a maior força no anúncio dessa ao mundo e a melhor defesa da sua ortodoxia.

O Padre de Lubac afirmou que nunca houve na história uma renovação da Igreja que não tenha sido também um retorno aos Padres. O Concílio Vaticano II não é nenhuma exceção, do qual estamos nos preparando para comemorar o 50º aniversário. Ele está cheio de citações dos Padres; muitos dos seus protagonistas foram Patrólogos. Depois da Escritura, os Padres são a segunda “camada” de terreno sobre a qual assenta e da qual extrai sua seiva a teologia, a liturgia, a exegese bíblica e toda a espiritualidade da Igreja.

Em certas catedrais góticas da Idade Média vemos algumas estátuas curiosas: personagens com tamanhos imponentes que sustentam, sentados sobre os ombros, homens muito pequenininhos. É uma representação em pedra de uma convicção que os teólogos do tempo formulavam com estas palavras: “Nós somos como anões sentados nos ombros de gigantes, para que possamos ver coisas e mais longe do que eles, não pela agudeza do nosso olhar ou por causa da altura do corpo, mas para que sejamos levados mais alto e elevados à altura gigantesca”( Bernardo di Chartres, in Giovanni di Salisbury, Metalogicon, III, 4 – Corpus Chr. Cont. Med., 98, p.116). Os gigantes eram, naturalmente, os Padres da Igreja. E isso nos acontece também hoje.

1. Atanásio, o defensor da divindade de Cristo

Começamos nossa análise com Santo Atanásio, bispo de Alexandria, nascido em 295 d.C. e morto em 373 d.C.. Poucos Padres deixaram uma marca tão profunda na história da Igreja. Ele é lembrado por muitas coisas: pela influência que teve na difusão do monaquismo, graças à sua “Vida de Antônio”, por ter sido o primeiro a reivindicar a liberdade da Igreja também em um estado cristão” (Atanasio, Historia Arianorum, 52,3: “O que que o Imperador tem a ver com a Igreja?”), pela sua amizade com os bispos ocidentais, favorecida pelos contatos feitos durante o exílio que marca um fortalecimento dos laços entre Alexandria e Roma …

Mas não é sobre isso que queremos ocupar-nos. Kierkegaard, no seu Diário, tem um pensamento curioso: “A terminologia dogmática da Igreja primitiva é como um castelo assombrado, onde repousam num sono profundo os príncipes e princesas mais graciosos. Basta somente acordá-los, para que pulem de pé com toda a sua glória” [S. Kierkegaard, Diario, II A 110 (Trad.ital. di C. Fabro, Brescia 1962, nr. 196; Tradução nossa para o português)]. O dogma que Atanásio nos ajuda a “acordar” e fazer brilhar em toda a sua glória é o da divindade de Cristo; por essa sofreu sete vezes o exílio.

O bispo de Alexandria está bem convencido de não ter sido o descobridor dessa verdade. Todo o seu trabalho consistirá, pelo contrário, no mostrar que esta sempre foi a fé da Igreja; que nova não é a verdade, mas a heresia contrária. O seu mérito, neste campo, foi aquele de remover aqueles obstáculos que tinham impedido até agora um reconhecimento pleno e sem reticências da divindade de Cristo no contexto cultural grego.

Um desses obstáculos, talvez o principal, era o hábito grego de definir a essência divina com o termo agennetos, não-gerado. Como proclamar que o Verbo é verdadeiro Deus, já que esse é Filho, ou seja gerado pelo Pai? Era fácil para Ario estabelecer a equivalência: gerado = feito, ou seja ir de genetos para genetos, e concluir com a célebre frase que fez explodir o caso: ” Que houve um tempo em que o Filho (ainda) não existia” (Em grego, ainda mais sucintamente: en ota ouk en: houve quando não havia). Isto era o mesmo que fazer de Cristo uma criatura, embora não “como as outras criaturas”. Atanásio defendeu ao máximo o genitus non factus de Nicéia, “gerado, não criado”. Ele resolve a controvérsia com a simples observação: “O termo agenetos foi inventado pelos gregos, que não conheciam o Filho”(Atanasio, De decretis Nicenae synodi, 31).

Outro obstáculo cultural para o pleno reconhecimento da divindade de Cristo, menos sentido no momento, mas não menos ativo, era a doutrina de uma divindade intermediária, o deuteros theos, ligado à criação do mundo material. A partir de Platão, esse tornou-se um dado comum a muitos sistemas religiosos e filosóficos da antiguidade. A tentação de assimilar o Filho, “por meio do qual foram criadas todas as coisas”, a esta entidade intermediária que tinha permanecido serpenteando a especulação cristã, embora não na vida da Igreja. O resultado era um esquema tripartido do ser: no topo de tudo, o Pai não-gerado – depois dele, o Filho (e mais tarde também o Espírito Santo) e por fim as criaturas.

A definição do homoousios, do “genitus non factus”, remove para sempre o principal obstáculo do helenismo para o reconhecimento da plena divindade de Cristo e obra a catarse cristã do universo metafísico dos gregos. Com esta definição, uma única linha de demarcação é desenhada na vertical do ser e esta linha não divide o Filho do Pai, mas o Filho das criaturas. Querendo colocar numa frase o significado perene da definição de Nicéia, podemos formulá-la assim: em todas as épocas e culturas, Cristo deve ser proclamado “Deus”, não em qualquer sentido derivado ou secundário, mas no sentido mais forte que a palavra “Deus” tem em tal cultura.

Atanásio fez da manutenção dessa conquista o propósito da sua vida. Quando todos, imperadores, bispos e teólogos, oscilavam entre uma rejeição e uma tentativa de acordo, ele permaneceu inflexível. Houve momentos em que a futura fé comum da Igreja vivia no coração de um só homem: o seu. Da atitude para com ele se decidia de que parte cada um estava.

2. O argumento soteriológico

Porém mais importante que insistir na fé de Atanásio na plena divindade de Cristo, que é bem conhecido e pacífico, é saber o que o motiva no campo de batalha, de onde lhe vem uma certeza tão absoluta. Não da especulação, mas da vida; mais especificamente, da reflexão sobre a experiência que a Igreja faz da salvaçãoem Cristo Jesus.

Atanásio desloca o interesse da teologia do cosmos ao homem, da cosmologia à soteriologia. Referindo-se à tradição eclesiástica antes de Orígenes, especialmente em Irineu, Atanásio valoriza os resultados elaborados na longa batalha contra o gnosticismo, que o tinha levado a concentrar-se na história da salvação e da redenção humana. Cristo não se coloca mais, como na época dos apologistas, entre Deus e o Cosmos, mas sim entre Deus e o homem. Que Cristo seja Mediador não significa que ele esteja entre Deus e o homem (mediação ontológica, muitas vezes entendida em sentido subordinacionista), mas que une Deus e o homem. Nele, Deus se faz homem e o homem se faz Deus, ou seja é divinizado (Atanasio, De incarnatione 54, cfr. Ireneu, Adv. haer. V, praef).

Sobre este pano de fundo, coloca-se a aplicação que Atanásio faz do argumento soteriológico em função da demonstração da divindade de Cristo. O argumento soteriológico não nasce com a controvérsia ariana; está presente em todas as grandes controvérsias cristológicas antigas, da antignóstica àquela antimonotelita. Na sua formulação clássica se lê: “Quod non est assumptum non est sanatum“, “O que não é assumido não é salvo” (Gregório Nazianzeno, Carta Cledonio, PG 37, 181) Isso se adapta dependendo dos casos, a fim de refutar o erro do momento, que pode ser a negação da carne humana de Cristo (gnosticismo), ou da sua alma humana (apolinarismo), ou da sua vontade livre (monotelismo).

No uso que faz Atanásio, pode-se formular da seguinte forma: “O que não é assumido por Deus não é salvo”, onde a força está toda naquele breve acréscimo “por Deus”. A salvação exige que o homem não seja assumido por qualquer intermediário, mas pelo próprio Deus: “Se o Filho é uma criatura – Atanásio escreve – o homem permaneceria mortal, não ficando unido a Deus”, e ainda: “O homem não seria divinizado, se o Verbo que se fez carne não fosse da mesma natureza do Pai”( Atanasio, Contra Arianos II 69 e I 70). Atanásio formulou muitos séculos antes de Heidegger, e tomando-a com uma seriedade muito maior, a idéia de que “só um Deus pode nos salvar,” nur noch ein gott kann uns retten (Antwort. Martin Heidegger im Gespräch, Pfullingen 1988).

As implicações soteriológicas que Atanásio tira do homoousios de Nicéia são numerosas e profundíssimas. Definir o Filho “consubstancial” ao Pai significava colocá-lo em um nível tal, pelo qual nada absolutamente podia permanecer fora do seu raio de ação. Significava também enraizar o significado de Cristo no mesmo fundamento no qual estava enraizado o ser de Cristo, ou seja no Pai. Jesus Cristo, quer dizer, não é, na história e no universo, uma segunda presença aditiva com relação àquela de Deus; pelo contrário, ele é a presença e a importância mesma do Pai. Escreve Atanásio:

“Bom como é, o Pai, com o seu Verbo que é também Deus, guia e sustenta o mundo inteiro, porque a criação, iluminada pela sua direção, pela sua providência e pela sua ordem, possa persistir no ser… O onipotente e santíssimo Verbo do Pai, penetrando todas as coisas e chegando em toda parte com a sua força, dá luz a toda realidade e tudo contém e abraça em si mesmo. Não há nenhum ser que caia fora fora do seu domínio. Todas as coisas recebem totalmente dele a vida e dele são mantidas nela: as criaturas individuais em sua individualidade e o universo criado em sua totalidade” (Atanasio, Contra gentes 41-42).

Deve-se, contudo, fazer uma clarificação importante. A divindade de Cristo não é um “postulado” prático, como é, para Kant, a própria existência de Deus (I.Kant, Crítica da razão prática, cap. III, VI). Não é um postulado, mas a explicação de um “dado”. Seria um postulado, e, portanto, uma dedução humana teológica, se se partisse de uma certa ideia de salvação e se deduzisse dela a divindade de Cristo como a única capaz de obrar tal salvação; é em vez a explicação de um dado se se começa, como faz Atanásio, a partir de uma experiência de salvação e se demonstra como essa não poderia existir se Cristo não fosse Deus. Não é sobre a salvação que se fundamenta a divindade de Cristo, mas é sobre a divindade de Cristo que se fundamenta a salvação.

3. Corde creditur!

Mas é hora de voltar-nos a nós mesmos para ver o que podemos aprender hoje da épica batalha suportada por Atanásio. A divindade de Cristo é hoje o verdadeiro “articulus stantis et cadentis ecclesiae”, a verdade com a qual a Igreja está de pé ou cai. Se em outros tempos, quando a divindade de Cristo era pacificamente aceita por todos os cristãos, se podia pensar que tal “artigo” fosse a “justificação gratuita por fé”, agora não é mais assim. Podemos dizer que o problema vital para o homem de hoje é estabelecer a forma como o pecador é justificado, quando nem mesmo se acredita mais numa necessidade de justificação, ou se está convencido de encontrá-la em si mesmo? “Eu mesmo hoje me acuso – Sartre faz gritar do palco uma das suas personagens – e só eu posso também absolver-me, eu o homem. Se Deus existe, o homem não é nada” (J.-P. Sartre, Il diavolo e il buon Dio, X, 4, Gallimard, Parigi 1951, p. 267 s.).

A divindade de Cristo é a pedra angular que suporta os dois principais mistérios da fé cristã; a Trindade e a Encarnação. São como duas portas que se abrem e se fecham juntas. Descartada aquela pedra, todo o edifício da fé cristã desmorona sobre si mesmo: se o Filho não é Deus, de quem está formada a Trindade? Tinha-o denunciado claramente Santo Atanásio, escrevendo contra os arianos:

“Se o Verbo não existe junto com o Pai desde toda a eternidade, então não existe uma Trindade eterna, mas primeiro houve a unidade e depois, com o passar do tempo, por acréscimo, começou a ser a Trindade “(Atanasio, Contra Arianos I, 17-18, PG 26, 48).

(Uma idéia – esta da Trindade que se forma, “por acréscimo” – que voltou a ser proposta, em anos não muito distantes, por algum teólogo que aplicou à Trindade o esquema dialético do devir de Hegel!) Bem antes de Atanásio, Sao João tinha estabelecido este vínculo entre os dois mistérios: “Todo aquele que nega o Filho, também não possui o Pai. O que confessa o filho também possui o Pai (I Jo 2,23). As duas coisas permanecem ou caem juntas, mas se caem juntas então devemos infelizmente dizer com Paulo que nós cristãos “somos os mais dignos de compaixão de todos os homens” (1 Cor 15,19).

Nós devemos deixar-nos investir plenamente daquela pergunta tão respeitosa, mas tão direta de Jesus: “Mas vós, quem dizeis que eu sou?”, E daquela ainda mais pessoal: “Acreditas?” Acreditas realmente? Acreditas com todo o coração? São Paulo diz que “quem crê de coração obtém a justiça, e quem confessa com a boca, a salvação” (Rm 10,10). No passado, a profissão da fé verdadeira, ou seja, o segundo momento deste processo tem tido às vezes tanta importância que deixou na sombra aquele primeiro momento que é o mais importante e que se desenvolve nas profundidades recônditas do coração. “É da raiz do coração que se eleva a fé”, exclama Santo Agostinho (Agostinho, Comentário ao Evangelho de João, 26,2 ;PL 35,1607)

Será talvez necessário destruir em nós, que cremos, e em nós homens de Igreja, a falsa persuasão de já crêr, de estar em dia no que respeita à fé. É necessário provocar a dúvida –óbviamente não de Jesus, mas de nós – para então podermos começar a busca de uma fé mais autêntica. Talvez que não seja um bem, por um pouco de tempo, não querer demonstrar nada a ninguém, mas interiorizar a fé, redescobrir as suas raízes no coração! Jesus perguntou a Pedro três vezes: “Me amas?”. Sabia que na primeira e na segunda vez, a resposta tinha saído muito rapida, para ser aquela verdadeira. Finalmente, na terceira vez, Pedro compreendeu. Também a questão da fé deve ser colocada assim para nós; por três vezes, insistentemente, até que nós não nos demos conta e entremos na verdade: “Crês? Tu crês? Crês realmente?”. Talvez no final responderemos: “Não, Senhor, eu realmente não creio com todo o coração e com toda a alma. Aumenta a minha fé!”.

Atanásio nos lembra, entretanto, uma outra importante verdade: que a fé na divindade de Cristo não é possível, se não se faz também a experiência da salvação obrada por Cristo. Sem esta, a divindade de Cristo se torna facilmente uma idéia, uma tese, e sabemos que à uma idéia é sempre possível opor outra idéia, e à uma tese, outra tese. Só à uma vida – diziam os Padres do deserto – não há nada que se possa opor.

A experiência da salvação é feita através da leitura da palavra de Deus (e tomando-a por aquilo que é, palavra de Deus!), administrando e recebendo os sacramentos, especialmente a Eucaristia, lugar privilegiado da presença do Ressuscitado, exercitando os carismas, mantendo um contato com a vida da comunidade dos que creem, pregando Evagrio, no IV século, formulou esta célebre frase: “Se é teólogo, rezarás realmente e se rezas realmente será teólogo”( Evagrio, De oratione61 ;PG 79, 1165).

Atanásio impediu que a investigação teológica permanecesse prisioneira da especulação filosófica das várias “escolas” e se tornasse ao invés disso aprofundamento do dado revelado na linha da Tradição. Um eminente historiador protestante reconheceu em Atanásio um mérito particular neste campo: “Graças à ele – escreveu – a fé em Cristo permaneceu rigorosa fé em Deus e, de acordo com sua natureza, totalmente distinta de todas as outras formas – pagãs, filosóficas, idealistas – de fé… Com ele, a Igreja tornou-se novamente instituição de salvação, ou seja, no sentido estrito do termo, ‘Igreja’, cujo conteúdo próprio e determinante foi constituído pela pregação de Cristo” (H. von Campenhausen, I Padri greci, Brescia 1967, pp. 103-104).

Tudo isso nos desafia hoje de maneira especial, depois que a teologia foi definida como uma “ciência” e é professada em círculos acadêmicos, muito mais descomprometida da vida da comunidade dos que creem do que era na época de Atanásio, a escola teológica, chamada Didaskaleion, florescida em Alexandria por obra de Clemente e de Orígenes. A ciência exige do pesquisador que “domine” a sua matéria e que seja “neutro” diante do objeto da própria ciência; mas como “dominar” aquele que pouco antes tens adorado como o teu Deus? Como manter-se neutro quanto ao objeto quando esse objeto é Cristo? Foi um dos motivos que me levaram, em algum momento da minha vida, a abandonar o ensino acadêmico para dedicar-me a tempo integral ao ministério da palavra. Lembro-me do pensamento que surgia em mim, depois de participar de congressos ou debates bíblicos e teológicos, especialmente no exterior: “Já que o mundo universitário voltou as costas para Jesus Cristo eu voltarei as costas para o mundo universitário”.

A solução para este problema não é abolir o estudo acadêmico da teologia. A situação italiana nos faz ver os efeitos negativos produzidos pela ausência de faculdades teológicas nas universidades estaduais. A cultura católica e religiosa no geral foi empurrada à um gheto; nas livrarias seculares não se encontra nenhum livro religioso, só se for de algum tema esotério ou de moda. O diálogo entre teologia e conhecimento humano, científico e filosófico, se realiza “à distância”, e não é a mesma coisa. Falando em ambientes universitários, eu digo muitas vezes para não seguir o meu exemplo (que continua a ser uma escolha pessoal), mas de valorizar ao máximo o privilégio de que gozam, buscando se for o caso tentar acoplar ao estudo e ao ensino também algumas atividades pastorais compatíveis com ele.

Se não se pode e não se deve tirar a teologia dos ambientes acadêmicos, há porém uma coisa que os teólogos acadêmicos podem fazer e é ser muito humilde para reconhecer os seus limites. A sua não é a única, nem a mais alta expressão da fé. O Padre Henri de Lubac escreveu: “O ministério da pregação não é a vulgarização de um ensinamento doutrinário em forma mais abstrata, que seria anterior e superior a ele. É, pelo contrário, o mesmo ensinamento doutrinal, na sua forma mais alta. Isto era verdade da primeira pregação cristã, aquela dos apóstolos, e é também verdadeira da pregação daqueles que lhes sucedem na Igreja: os Padres, os Doutores e os nossos Pastores no tempo presente”( H. de Lubac, Exégèse médièvale, I, 2, Parigi 1959, p. 670.). H. U. von Balthasar, por sua vez, fala da “missão da pregação na Igreja, à qual está sujeita a mesma missão teológica” (H.U. von Balthasar, La preghiera contemplativa, citado também por De Lubac.).

4. “Coragem, eu estou aqui!”

Voltemos para concluir a divindade de Cristo. Ela ilumina toda a vida cristã.

Sem a fé na divindade de Cristo:

Deus está longe,

Cristo permanece no seu tempo,

o Evangelho é um dos muitos livros religiosos da humanidade,

a Igreja, uma simples instituição,

a evangelização, uma propaganda,

a liturgia, uma rememoração de um passado que não existe mais,

a moral cristã, um peso que é tudo, menos leve, e um jugo que é tudo, menos suave.

Mas com a fé na divindade de Cristo:

Deus é Emanuel, o Deus conosco,

Cristo, é o Ressuscitado que vive no Espírito,

o Evangelho, a palavra definitiva de Deus para toda a humanidade,

a Igreja, sacramento universal de salvação,

a evangelização, partilha de um dom,

a liturgia, encontro alegre com o Ressuscitado,

a vida presente, o começo da eternidade.

De fato foi escrito: “Aquele que crê no Filho tem a vida eterna” (Jo 3, 36). A fé na divindade de Cristo nos é particularmente indispensável neste momento para manter viva a esperança sobre o futuro da Igreja e do mundo. Contra os gnósticos, que negavam a verdadeira humanidade de Cristo, Tertuliano elevou, no seu tempo, o grito: “Parce unicae spei totius orbis“, não tirem do mundo a sua única esperança!(Tertulliano, De carne Christi, 5, 3 ;CC 2, p. 881). Nós devemos dizer hoje àqueles que se recusam a acreditar na divindade de Cristo.

Aos apóstolos, depois de ter acalmado a tempestade, Jesus dirigiu uma palavra que repete hoje aos seus sucessores: “Coragem! Sou eu, não tenhais medo “(Mc 6,50).

[Tradução Thácio Siqueira]

O CORAÇÃO NÃO É UMA PRAÇA MAS UM TEMPLO

Evangelho do III Domingo da Quaresma

ROMA, quinta-feira 8 de março de 2012 (ZENIT.org) – Ex 20,1-17

“Naqueles dias, Deus pronunciou todas estas palavras, dizendo: “Eu sou Iahweh teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão. Não terás outros deuses diante de mim (…).

Jo 2,13-25

“Estando próxima a Páscoa dos judeus, Jesus subiu a Jerusalém. No Templo, encontrou os vendedores de bois, de ovelhas e de pombas e os cambistas sentados. Tendo feito um chicote de cordas, expulsou todos do Templo, com as ovelhas e com os bois; lançou ao chão o dinheiro dos cambistas e derrubou as mesas e disse aos que vendiam pombas: “Tirai tudo isto daqui; não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio”. Recordaram seus discípulos do que está escrito: “O zelo por tua casa me devorará”.

Os Judeus interpelaram-no, então, dizendo: “Que sinal nos mostras para agires assim?”. Disseram-lhe, então, os judeus: “Quarenta e seis anos foram precisos para se construir este Templo, e tu o levantarás em três dias?”. Ele, porém, falava do templo do seu corpo. Assim, quando ele ressuscitou dos mortos seus discípulos lembraram-se de que dissera isso, e creram na Escritura e na palavra dita por Jesus”.

Bento XVI, comentando o Evangelho de hoje, escreveu: “Na purificação do templo, Jesus agia em harmonia com a lei, evitando um abuso do templo … a sua reivindicação era mais profunda porque com o seu agir queria dar cumprimento à Lei e aos Profetas”(Jesus de Nazaré, segunda parte, p. 23s).

Sublinhando a ideia do cumprimento da Lei, o Papa quer dizer que cada um dos dez mandamentos (Êxodo 20,1-17), consiste basicamente numa modalidade particular do mandamento do amor. Portanto: cumprimento como plenitude de significado e de observação perfeita, como afirma também Paulo: “A caridade não pratica o mal contra o próximo. Portanto, a caridade é a plenitude da Lei” (Rom 13,10).

E eis aqui, de forma coerente, a conclusão de Bento XVI: “Jesus não vem como destruidor; não vem com a espada do revolucionário. Vem com o dom da cura. Dedica-se à todos aqueles que, por causa dos seus males são empurrados para as margens da vida e para as margens da sociedade. Ele mostra Deus como Aquele que ama, e o seu poder como o poder do amor “(idem., p. 34).

Entendemos, portanto, que o zelo que devora o coração de Jesus é a urgência irreprimível do amor, irresistível e transformador como o fogo.

Tinha profeticamente anunciado, alguns séculos antes, o profeta Isaías com estas palavras: “Em Sião os pecadores ficaram apavorados: o tremor se apoderou dos ímpios. Quem dentre nós poderá permanecer junto ao fogo devorador? Quem dentre nós poderá manter-se junto aos braseiros eternos?”(Isaías 33,14-16).

Se esta pergunta retórica pode historicamente fazer pensar na inação dos ‘homens do templo’ (guardas e soldados) que não intervieram em Jerusalém para parar com o gesto do Senhor, ela nos orienta hoje na reflexão sobre os “homens do templo” de hoje, sacerdotes e leigos.

Começamos do catecismo.

Todo cristão batizado sabe, ou deveria saber, quem é Aquele cuja ardente Presença eucarística na “casa do Pai” (a igreja) é indicada apenas por uma fina chama, símbolo da “chama de fogo”, revelada a Moisés (Êx 3,2).

Ele também sabe que o Senhor Jesus, vivo e presente dia e noite na tenda fixa do tarbernáculo, não renunciou de ser o companheiro, o amigo dos nossos passos, como o foi com os Israelitas, no tempo do êxodo, no deserto.

Instituindo o Batismo, de fato, Deus manifestou a sua vontade de habitar no mesmo coração do homem, como íntima e sagrada “tenda do encontro”  onde pode dialogar com Ele.

Somos assim levados de volta para o Evangelho de hoje, que é também o Evangelho da verdade do templo, seja aquele material das nossas igrejas, seja aquele constituído pela pessoa batizada, “Templo do Espírito santo” (1 Cor 6, 19).

E a verdade é esta: o coração do homem não foi criado para ser uma “Praça” pagã, um movimentado mercado de confusão moral e espiritual, mas para ser o sagrado lar, o Templo do Deus vivente. Se em Jerusalém, há dois mil anos, a intenção fundamental da ‘purificação’ feita por Jesus foi aquela de eliminar da praça “o que é contrário ao comum conhecimento e adoração de Deus, (Bento XVI, id.), hoje é o nosso coração que necessita radicalmente da purificação da Palavra de Deus.

Para este fim, por conseguinte, é necessário em primeiro lugar fazer silêncio, dado que:

“Os distúrbios, a escuridão cultural e religiosa que dominam a terra são compostos principalmente do não escutar à Deus, do não acolher a vida que é o Verbo encarnado, aquele que ilumina todo o homem. A sociedade, como tal, rejeita a idéia de um Criador, de um Senhor que nos ama, e pretende organizar a própria vida deixando-o de lado. É a desordem cultural principal do nosso tempo, que resulta em desordem social, injustiças, fome, miséria, perseguições, exploração “(C.M. Martini, Il caso serio della fede, p.88s, tradução minha).

Só no silêncio poderá ser acolhido o feliz e sempre novo anúncio do Evangelho: Deus não está distante, o homem não é uma Praça, o templo do seu coração foi definitivamente purificado e salvo pelo “Templo do corpo de Cristo” (Jo 2 , 21), e a Glória de Deus não se desviará dele nunca mais, apesar da abominação dos ídolos, que ainda se encontra nele. Jesus não é Deus contra nós, mas Deus conosco!

Devora-o um tal zelo de amor pessoal que cada um pode exclamar espantado: Me amou e se entregou por mim” (Gal 2,20).

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* Padre Angelo del Favero, cardiologista, em 1978, co-fundou um dos primeiros Centros de Ajuda à Vida em torno do Duomo de Trento, Itália. Tornou-se carmelita em 1987. Foi ordenado sacerdote em 1991 e foi conselheiro espiritual no santuário de Tombetta, perto de Verona. Atualmente dedica-se à espiritualidade da vida no convento Carmelita de Bolzano, junto à paróquia Nossa Senhora do Monte Carmelo.