Uma resposta católica às indignidades do homem moderno

Em uma sociedade atingida pela desumanização cada vez maior da pessoa, nada como recordar a vida e o magistério do Papa São João Paulo II.

Brian Kranick,  Crisis MagazineTradução:  Equipe Christo Nihil Praeponere

19 de Janeiro de 2017

Muitos podem ficar perplexos, mas é fato histórico que Adolf Hitler, um dos mais prolíficos genocidas em massa que o mundo já conheceu, foi também um vegetariano a quem causava horror a crueldade com os animais. Esse mesmíssimo e peculiar enigma foi revisitado quando a organização PETA (sigla em inglês para “Pessoas pelo Tratamento Ético dos Animais”) lançou a peça publicitária “Holocausto no seu prato” (Holocaust on Your Plate), em 2003, comparando animais confinados para consumo a prisioneiros judeus em campos de concentração nazistas. Como notou Richard Weikart, ironicamente ambos os grupos, os nazistas e o PETA, caíram na falácia do antropomorfismo, obscurecendo a distinção que existe entre humanos e animais. Esses são exemplos extremos, mas que lançam luz sobre uma profunda confusão filosófica da era moderna a respeito da dignidade da vida humana. Subjacente a essa desvalorização do homem está uma negação implícita da personalidade.

“Perdendo o sentido de Deus”, dizia São João Paulo II, “tende-se a perder também o sentido do homem, da sua dignidade e da sua vida.”
Essa visão misantrópica infelizmente está em ascensão na cultura ocidental. Para se ter uma ideia do problema, basta olhar para a grande onda de indignação e repúdio às mortes do leão Cecil e do gorila Harambe. O outro lado da supervalorização da vida animal pode ser, muitas vezes, o desprezo pela vida humana; o escândalo por causa de Cecil e Harabe contrasta fortemente com a complacência de nossa cultura em relação ao aborto, à eutanásia, à eugenia, ao suicídio e ao suicídio assistido. Essa “cultura de morte” é a dimensão negativa do esforço moderno por remodelar o ser humano simplesmente como um animal ordinário, não mais dotado de uma dignidade ontológica ou de um propósito teleológico dados por Deus. A vida humana se torna dispensável, em comparação com o reconhecido bem maior da sociedade ou do Estado, ou com o capricho do indivíduo. O valor da pessoa humana hoje se tornou obscuro.

Como chegamos a esse ponto?

A mistura da dignidade do homem e do animal não é senão sintoma de uma outra confusão, mais geral e sutil. O crescente desapreço pelo fato de o homem ser especial atravessa os séculos, tendo como incremento subversões filosóficas às bases do verdadeiro conhecimento.

O núcleo dessa crise está na epistemologia. A amplitude e a profundidade do conhecimento humano foram sacrificadas nos altares do ceticismo e do materialismo. Esse erro epistemológico moderno gira em torno da negação de nossa verdadeira natureza humana como seres compostos, de corpo e alma. Como consequência dessa separação, os primeiros passos em falso foram dados na filosofia.

Alguns traçam os erros do secularismo moderno até Guilherme de Ockham, no século XIV, para quem essências universais, como a humanidade, não eram reais, mas apenas extrapolações nominais em nossas mentes. A teoria de Ockham era de que não existiam formas universais, apenas formas individuais. Isso minou parte de nossa habilidade de explicar a realidade objetiva. Se não há nenhuma forma humana universal, ou natureza humana, então estamos privados de satisfazer os fins de nossa natureza e o nosso propósito teleológico. Uma vez que essas coisas se foram, não é difícil imaginar uma confusão de personalidade e uma perda de ética.

Na era do Iluminismo, empiristas como Locke e Hume propuseram que apenas o fenômeno de uma coisa podia ser conhecida, não a coisa em si. Assim como Ockham, eles rejeitaram o conhecimento abstrato dos universais em favor simplesmente da experiência sensível. Em outras palavras, eles trocaram nosso conhecimento intelectual e espiritual por um semelhante ao dos animais. Kant, de modo similar, só admitia que conhecêssemos “as coisas tal como se conheciam”, tal como interpretadas pela mente, mas não “as coisas em si mesmas”. Esse “geocentrismo epistemológico”, como o chamava o padre Stanley Jaki, impede-nos de conhecer a Deus, a alma e a natureza completa da realidade.

Mas talvez o golpe mais devastador ao entendimento de nossa natureza composta venha do materialismo biológico, na forma do darwinismo do século XIX. A teoria de Darwin tornou o materialismo biológico estrito e o cientificismo os únicos conhecimentos predominantemente “aceitáveis”. Não mais era necessária uma criação especial do homem por Deus, ou uma alma intelectual e imaterial. O homem seria apenas um primata evoluído, criado através de forças cegas, erros genéticos e graças à sobrevivência dos mais fortes. A separação de corpo e alma, iniciada em filosofias dos séculos anteriores, estava agora completa. Como notou Chesterton, “o que a evolução nega em especial não é a existência de Deus, mas a existência do homem”. O homem não era mais um ente composto espiritual, mas apenas uma criatura física.

O mundo que o materialismo forjou

Esse reducionismo materialista teve grandes repercussões na visão de mundo moderna e na desumanização do homem. Quando os materialistas finalmente tomaram o poder, os regimes comunistas, de Stálin, Mao e Pol Pot, mataram cerca de 100 milhões de pessoas. Também o darwinismo social se infiltrou no pensamento do Ocidente, espalhando a ideia de que havia pessoas “aptas” e “inaptas”, bem como raças “superiores” e “inferiores”. Isso se tornou notável na Alemanha nazista, onde noções racistas eram supostamente “provadas” e “justificadas” pela ciência. Hitler abraçou completamente essa ideia da ética evolucionista em sua marcha rumo à guerra e ao genocídio.

A evidência do século passado mostra como a ética evolucionista é, na verdade, ética nenhuma. Ela mina nossa segurança em relação à moralidade, tornando-a subjetiva e, no espírito dos nossos tempos, relativista. O reducionismo material alterou a visão das pessoas sobre a santidade da vida humana, desvalorizando o que significa ser humano. A alma se tornou meramente um epifenômeno da matéria. Nesse sentido, o Cristianismo está em desacordo com o materialismo darwinista estrito, tal como oposto à teoria geral da evolução, com a qual, na verdade, não existe conflito algum. Esse materialismo dogmático nega a priori até mesmo a possibilidade de causalidade final no homem. Ela reprime falsamente a razoabilidade da fé em Deus, de nossos princípios morais e o conhecimento de nós mesmos como seres espirituais.

O Cristianismo foi construído sobre a revelação, é claro, mas também sobre a razão.
Infelizmente, esse reducionismo epistemológico não tem só persistido, mas também aumentado, até o presente. Ainda que haja algum progresso contra a cultura da morte, ainda permanece uma espécie de amnésia, persistindo em nossa psiquê cultural, acerca da dignidade humana. Não surpreendentemente, também tem acontecido um simultâneo afastamento da fé, como evidenciam os números recorde de não-religiosos e ateus em entrevistas recentes (i.e., o “crescimento dos Nenhum”, que assinalam “nenhuma” preferência religiosa).

Uma resposta católica

Como nós, católicos, devemos reagir a tudo isso? Comecemos reafirmando que existem muitas razões boas, intelectuais e multifaces para crer. O Cristianismo e a fé em Deus são perfeitamente razoáveis, não obstante os protestos dos materialistas científicos modernos e dos ateístas. Ciência e teologia, fé e razão não são opostas uma à outra, mas são “como duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade” [1]. De fato, nunca antes se teve disponíveis tantos registros científicos avançados que apontam para um Criador. Que melhor comprovação poderia haver, por exemplo, do argumento cosmológico de Santo Tomás para Deus como o “primeiro motor”, que o Big Bang e a sua última evidência: radiação cósmica de fundo em micro-ondas?

O Cristianismo foi construído sobre a revelação, é claro, mas também sobre a razão. Jesus mandou-nos amar a Deus com todo o nosso entendimento (cf. Mt 22, 37). A tradição intelectual do Ocidente e a sua ciência empírica são, no fim das contas, frutos de nossa civilização cristã. A disputa com o secularismo moderno só surge com a negação materialista de Deus e da alma humana, por serem uma negação de nosso próprio ser. O ateísmo sofre de um defeito epistemológico, que é o de negar a personalidade. Como afirma o Papa Leão XIII em sua encíclica Rerum Novarum, de 1891, “o que em nós se avantaja, o que nos faz homens, nos distingue essencialmente do animal, é a razão ou a inteligência” [2]. Devemos abraçar a ideia da personalidade e a filosofia do personalismo como parte de nossa ética e visão de mundo, e como um bastião contra as filosofias desumanizadoras de nosso tempo.

Um dos grandes proponentes da moderna filosofia do personalismo foi o Papa São João Paulo II. Quando era apenas Karol Wojtyla, ele testemunhou em primeira mão essas forças desumanizadoras do materialismo na Polônia, inicialmente sob a ocupação nazista e, depois, debaixo do comunismo soviético. Ele esteve no epicentro de ambas as sanhas totalitárias e observou o que chamava de “pulverização” da pessoa humana. Foi em reação a essas ideologias destruidoras e às tiranias políticas subsequentes que ele ajudou a liderar um novo movimento filosófico e uma teologia moral focada na dignidade absoluta da pessoa humana.

O ser humano deve sempre ser tratado como um fim em si mesmo, sem jamais ser submetido a outrem como meio para atingir um fim.
Wojtyla defendia um “personalismo tomista”, uma filosofia focada na dignidade transcendente de cada pessoa. O seu personalismo em particular era fundado na metafísica clássica de Santo Tomás de Aquino, bem como na visão cosmológica do ser humano como um ente apartado do resto da criação por seu intelecto e por sua natureza racional.

Wojtyla procurou ir além disso, no entanto, a fim de explicar a “totalidade da pessoa”. Ele reconhecia a grande importância, para a experiência humana, da perspectiva interior. Esta ele a chamava de “subjetividade”, experimentada na consciência de cada pessoa, da qual não poderia sequer haver duas iguais. Cada pessoa, então, é absolutamente irrepetível, insubstituível, incomunicável e irredutível.

O Papa João Paulo falava disso em termos práticos, em seu “princípio personalista”, dizendo que o ser humano deve sempre ser tratado como um fim em si mesmo, sem jamais ser submetido a outrem como meio para atingir um fim. Internalizar esse princípio produziria inevitavelmente aplicações práticas concretas, tais como ir contra a escravidão e o tráfico humano. Mas também poderia ajudar a colocar a sociedade atual contra a normalização dessa cultura de morte, com seus impulsos de descaracterizar a pessoa humana, como se viu recentemente na Holanda — onde praticaram a eutanásia com um homem por ele ser alcóolatra — e no discurso de Peter Singer — o ético utilitarista de Princeton que pediu pelo fim da vida de crianças deficientes.

Cada ser humano é único

Como católicos, nós devemos sempre defender a dignidade inviolável da pessoa humana, princípio que remonta ao próprio Gênesis, é claro, onde lemos que “Deus criou o homem à sua imagem” (Gn 1, 27). O Magistério faz eco disso ao chamar cada um de nós de “sinal do Deus vivo, ícone de Jesus Cristo” [3]. Temos uma transcendência interior em comum com nosso Criador. Nós, humanos, somos relacionais e seres sociais, feitos em conformidade com Deus, uma trindade de Pessoas intrarrelacionais.

Por ser imagem de Deus, há algo de especial no homem, que o separa de todo o resto da criação. Nós, sozinhos, podemos dizer “Eu”. Nenhum outro animal, por mais belo que pareça, pode pronunciar algo assim. Eles estão limitados pelo instinto. Mesmo nos mais elevados primatas, como no caso fascinante de Koko, a gorila que se comunica por sinais, a disparidade continua sendo imensa. Nas palavras do Papa João Paulo, é preciso dar “um salto ontológico” para atravessar o “grande abismo” que separa pessoa e não-pessoa. Só o ser humano é capaz de pensamento racional e abstrato, livre arbítrio, autoconsciência, ação moral, linguagem complexa, progresso tecnológica, propósito elevado, altruísmo, amor, criatividade, oração e adoração. O ser humano é diferente em grau e em substância, porque Deus formou cada pessoa da infinitude de Si mesmo [4].

No Novo Testamento, Jesus dá-nos o coração do personalismo com seu mandamento de “amar ao próximo como a si mesmo”. Porque, como ele revela noutro lugar, “o que tiverdes feito ao menor destes meus irmãos, foi a Mim que o fizestes”. Ao abraçar essa noção personalista em nossas vidas, nós nos livramos de nosso próprio egoísmo e frieza em relação ao próximo. Tornamo-nos capazes de ver a face de Deus no outro. Essa é a nossa vacina contra a desumanização da pessoa, juntamente com a adoção de uma cultura da vida que resista a séculos de ceticismo e materialismo e nos atraia a um conhecimento mais completo. O materialismo é apenas parcialmente verdadeiro. Ele nega a natureza mais elevada de nosso ser espiritual. Ao reconhecer a imagem de Deus em cada um, vemos o valor universal ontológico de cada pessoa, mesmo dos aparentemente menores e mais fracos de nós. Assim podemos, à luz do sacrifício de Cristo, contemplar “quão precioso aos olhos de Deus e quão inestimável é o valor da sua vida” com “a dignidade quase divina de cada homem” [5] — e agir de acordo com essa verdade.

Referências

Papa São João Paulo II, Carta Encíclica Fides et Ratio (14 de setembro de 1998), n. 1.
Papa Leão XIII, Carta Encíclica Rerum Novarum (15 de maio de 1891), n. 5.
Papa São João Paulo II, Carta Encíclica Evangelium Vitae (25 de março de 1995), n. 84.
Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2258.
Papa São João Paulo II, Carta Encíclica Evangelium Vitae (25 de março de 1995), n. 25.

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