BRASíLIA, 15 de Março de 2013 (Zenit.org) – Publicamos a seguir a mensagem quaresmal do então arcebispo de Buenos Aires, cardeal Jorge Mario Bergoglio, do dia 13 de fevereiro de 2013.
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Mensagem quaresmal do então arcebispo de Buenos Aires, cardeal Bergoglio
Aos sacerdotes, consagrados e leigos da arquidiocese.
Rasguem o seu coração, não as suas vestes;
voltem agora para o Senhor, seu Deus,
porque Ele é compassivo e clemente,
lento para a ira, rico em misericórdia…
Pouco a pouco, nos acostumamos a ouvir e ver, nos meios de comunicação, a crônica negra da sociedade contemporânea, apresentada quase com um perverso regozijo. E também nos acostumamos a tocá-la e a senti-la ao nosso redor e em nossa própria carne.
O drama está na rua, no bairro, em nossa casa e até em nosso coração. Convivemos com a violência que mata, que destrói famílias, que aviva guerras e conflitos em tantos países. Convivemos com a inveja, com o ódio, com a calúnia, com o mundano em nosso coração. O sofrimento de inocentes e pacíficos não deixa de nos esbofetear; o desprezo pelos direitos das pessoas e dos povos mais frágeis não são distantes de nós; o império do dinheiro, com
seus demoníacos efeitos como a droga, a corrupção, a transação de pessoas, inclusive de crianças, junto com a miséria material e moral, são a moeda corrente. A destruição do trabalho digno, as migrações dolorosas e a falta de futuro também se unem a esta sinfonia. Nossos erros e pecados, como Igreja, não escapam deste grande panorama. Os maiores egoísmos tentam ser justificados, mas não por isso minimizados; a falta de valores éticos dentro de uma
sociedade em metástase nas famílias, na convivência de bairro, de vila, nas cidades, nos falam da nossa limitação, da nossa fraqueza e da nossa incapacidade de transformar esta
lista inumerável de realidades destruidoras.
A armadilha da impotência nos leva a pensar: faz sentido tentar mudar tudo isso? Podemos fazer alguma coisa nesta situação? Vale a pena tentar, enquanto o mundo continua dançando carnaval e vestindo fantasias? Mas, quando cai a máscara, aparece a verdade e, mesmo que muitos achem anacrônico, volta a aparecer o pecado, que fere a nossa carne com toda a sua
força destruidora, distorcendo os destinos do mundo e da história.
A quaresma se apresenta como um grito de verdade e de esperança certa, que vem nos responder que sim, que é possível não nos maquiarmos nem desenhar sorrisos de plástico, como se nada estivesse acontecendo. Sim, é possível que tudo seja novo e diferente, porque Deus continua sendo “rico em bondade e misericórdia, sempre disposto a perdoar”, e nos encoraja a começar de novo todas as vezes que for preciso. Hoje, novamente, nós somos convidados a empreender um caminho pascal rumo à Vida, um caminho que inclui a cruz e a renúncia; que será incômodo, mas não estéril. Somos convidados a reconhecer que alguma coisa não anda bem em nós mesmos, na sociedade e na Igreja, a mudar, a virar o jogo, a nos converter.
Neste dia, são fortes e desafiantes as palavras do profeta Joel: rasguem o coração, não as roupas: convertam-se ao Senhor, seu Deus. É um convite para todo o povo; ninguém está excluído.
Rasguem o coração e não as roupas da penitência artificial, que não tem garantias de futuro.
Rasguem o coração e não as vestes de um jejum formal, de mero cumprimento, que continua nos mantendo satisfeitos.
Rasguem o coração e não as roupas de uma oração superficial e egoísta, que não chega ao âmago da própria vida para deixar que Deus a toque.
Rasguem os corações para dizer com o salmista: “Nós pecamos”. “A ferida da alma é o pecado: ó pobre ferido, reconhece o teu Médico! Mostra a ele as chagas das tuas culpas. E já que dele não se escondem os nossos secretos pensamentos, deixa que ele ouça o gemido do teu coração. Move-o à compaixão com as tuas lágrimas, com a tua insistência; importuna-o! Que ele escute os teus suspiros, que a tua dor chegue até ele, para que, no fim, possa ser dito: O Senhor perdoou o teu pecado” (São Gregório Magno).
Esta é a realidade da nossa condição humana. Esta é a verdade que pode nos aproximar da autêntica reconciliação, com Deus e com os homens. Não se trata de desacreditar a autoestima, e sim de penetrar no mais profundo do nosso coração e assumir o mistério do sofrimento e da dor que nos ata há séculos, há milhares de anos… desde sempre.
Rasguem os corações, para que, através da sua fenda, possamos nos olhar de verdade.
Rasguem os corações, abram seus corações, porque só num coração rasgado e aberto pode entrar o amor misericordioso do Pai, que nos ama e que nos cura.
Rasguem os corações, diz o profeta, e Paulo nos pede quase de joelhos: “Deixem-se reconciliar com Deus”. Mudar o modo de viver é o sinal e o fruto deste coração dilacerado e reconciliado com um amor que nos ultrapassa.
Este é o convite, diante de tantas feridas que nos doem e que podem nos levar à tentação de endurecer: rasguem os corações para experimentar, na oração silenciosa e serena, a suavidade da ternura de Deus.
Rasguem os corações para sentir o eco de tantas vidas dilaceradas. Que a indiferença não nos deixe inertes.
Rasguem os corações para poder amar com o amor com que somos amados, consolar com a consolação com que somos consolados e compartilhar o que recebemos.
Este tempo litúrgico que a Igreja começa hoje não é só para nós, mas também para a transformação da nossa família, da nossa comunidade, da nossa Igreja, da nossa pátria, do mundo inteiro. São quarenta dias para nos convertermos à santidade de Deus.
Convertamo-nos em colaboradores que receberam a graça e a possibilidade de reconstruir a vida humana, para que todo homem experimente a salvação que Cristo conquistou para nós com a sua morte e ressurreição.
Junto com a oração e a penitência, como sinal da nossa fé na força da Páscoa que transforma tudo, nós também nos dispomos a iniciar, como nos outros anos, o nosso “gesto quaresmal solidário”. Como Igreja em Buenos Aires, que marcha para a Páscoa e que crê que o Reino de Deus é possível, nós precisamos que, dos nossos corações rasgados pelo desejo de conversão e pelo amor, brote a graça e o gesto eficaz que alivia a dor de tantos irmãos que caminham conosco. “Nenhum ato de virtude pode ser grande se dele não seguir proveito para os outros. Assim, pois, por mais que passes teu dia em jejum, por mais que durmas sobre chão duro, e comas cinzas, e suspires continuamente, se não fazes bem aos outros, não fazes nada de grande” (São João Crisóstomo).
Este ano da fé, que estamos vivendo, é também a oportunidade que Deus nos presenteia para crescermos e amadurecermos no encontro com o Senhor, que se faz visível no rosto sofredor de tantos jovens sem futuro, nas mãos trêmulas dos idosos esquecidos, nos joelhos vacilantes de tantas famílias que continuam peitando a vida sem achar quem as apoie.
Desejo a todos uma santa quaresma, uma penitencial e fecunda quaresma, e, por favor, peço que rezem por mim. Que Jesus os abençoe e a Virgem Santa cuide de vocês.
Paternalmente,
Card. Jorge Mario Bergoglio s.j.
Buenos Aires, 13 de fevereiro de 2013, Quarta-feira de Cinzas.